por Daniel Gorte-Dalmoro
O corpo nu, de costas, sob a luz fraca, não permite identificar de início se se trata de homem ou mulher. E a questão principal ali está para além de gênero: temos uma pessoa, um corpo humano. A baixa intensidade da luz cria relevos inusitados no corpo que se retorce. Em certos momentos, o corpo em seu lento mover se deforma – ainda assim, o que há ali, em seus relevos desconhecidos, em sua deformidade, é um corpo humano. Em Uma batida de uma borboleta, Maki Watanabe diz querer dançar como uma mariosa girando em torno de uma lâmpada. O corpo tenso e teso, em agonia, me faz perguntar: seria em volta da luz da Little Boy que Watanabe dança? Ou a referência é pesada demais, e posso ser menor, mais mesquinho, e pensar que a lâmpada que mariposamente giramos em volta não precisa ser de uma destruição instantânea, pode ser do nosso quotidiano baço e banal, feita de brilhos artificais que não nos levam a lugar algum?
Estou no Centro de Referência da Dança de São Paulo, no Viaduto do Chá. É minha segunda experiência com Butô. A primeira, Sankai Juku na imensidão do teatro Alfa, me fez perder algo desse caráter minuciosamente humano que Watanabe e Zaitsu me trazem e me tocam.
Na segunda metade, Gyohei Zaitsu me emociona com seu Uma flor sem nome. Mesmo sem ter lido o programa, é perceptível notar como morte e vida convivem naquele corpo que se apresenta sem gênero – ou com todos os gêneros -, sob a luz inicialmente tênue. Morte e vida, destruição e renascimento, devastação e esperança. Em terra devastada, aquele corpo se faz esperança – de inicio, a esperança parece renascer à custa de lucidez. Vale a pena a esperança quando não há sequer solo onde ela possa brotar? me pergunto. Zaitsu defende que sim: a flor a desabrochar – e o que parecia loucura se transforma em realidade. Não é a flor de Drummond, não se deve parar tudo para vê-la surgir no asfalto, porque não há mais asfalto, e é de se questionar se há ainda alguém para poder observá-la. É uma flor e nada mais. Em torno, os seres invisíveis, as almas perdidas, e o jardineiro esperançoso orgulhoso de seu cultivo. Diz o programa: “O vento sopra da terra da morte/ O ar está repleto de seres invisíveis e desconhecidos/ Nele, as almas estão perdidas tranqüilamente/ Nutrindo a loucura de uma flor desabrochando…/ Uma flor se desabrochou graças a todos os cadáveres…”.
Saio do CRD com uma frase lancinante que minha mãe falou pouco tempo atrás: “a gente não morre de uma vez, a gente vai morrendo aos poucos. Viver é morrer aos pedaços”. Depois desses dois espetáculos, interrogo: para além da morte, o que há? E penso que talvez morrer seja renascer em terras até então aparentemente áridas e estéreis, das mãos de um jardineiro aparentemente louco.
18 de setembro de 2015.
agradeço ao Luis F. pelo convite para a dança!
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