Faleceu no último domingo (3) o intelectual e ativista político Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo. Mas, nas próprias palavras do líder quilombola, ele continuará entre nós. “Você tem que assumir o compromisso que vai ensinar tudo o que lhe ensinei para quem precisar. E enquanto você ou alguém que aprendeu com você está ensinando, passando para frente o nosso conhecimento. Eu estarei vivo, mesmo enterrado.”
Nêgo Bispo nasceu no vale do Rio Berlengas, região da cidade de Francinópolis, no Piauí, em 12 de dezembro de 1959, e viveu boa parte de sua vida no Quilombo Saco-Curtume, em São João do Piauí. Prestes a completar 64 anos, o filósofo não resistiu a uma parada cardiorrespiratória depois de enfrentar um quadro grave de diabetes. nas últimas semanas, ele teve alguns desmaios.
Autor de três livros e dezenas de artigos, em que resgatava a história da luta do povo negro, Bispo criou ainda o conceito de contra-colonialismo, que seria um antídoto contra o veneno da colonização.
Em entrevista à Revista Revestrès, o quilombola contou que se registrou sozinho, aos 12 anos. Como não sabia o nome do pai, separado da mãe desde que ele tinha 7 anos, Bispo criou o próprio nome: Antônio Bispo dos Santos, pois imaginava que o patriarca seria Manoel Bispo dos Santos. Anos depois, o pai se registrou como Manoel Bispo Chaves. “Deixa eu dizer uma coisa engraçada: institucionalmente, eu não tenho pai”, declarou à revista.
Ainda menino, decidiu aprender a ler para “ensinar meus camaradas” e também para ser capaz de entender escrituras de terrenos, que passaram a ser impostas pelo Estado. “Os contratos orais estavam sendo substituídos por contratos escritos, o pessoal branco começou a nos impor determinadas normas e nós não dominávamos a escrita. Então fui pra escola pra fazer a tradução desses contratos”, continuou.
Já o apelido, Nêgo, surgiu enquanto ele ainda participava do movimento sindical, em 2007, ano em que lança sua primeira obra, Quilombos: Modos e significados. “Eu gostei do nome Nêgo”, disse o quilombola que até chegou a ser filiado do Partido dos Trabalhadores (PT), do qual se desvinculou no início da década de 1990, por considerar que os partidos não compreendiam as especificidades da luta quilombola.
Apesar de se distanciar dos movimentos sindicais, Nêgo Bispo atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.
Terminado os estudos, Nêgo Bispo voltou a fazer o que sempre fez: trabalhar na roça. Porém, foi repreendido pela mãe, uma vez que o apoio à educação de Bispo ainda garoto foi uma decisão comunitária, para que o quilombo tivesse uma pessoa capaz de entender contratos. “Meu filho, você estudou para ajudar nós, não estudou só para você. Se você tá cuidando só da sua roça, então o saber que nós lhe demos está perdido. Você precisa dizer ao povo as coisas que sabe.”
Este pensamento o acompanhou ao longo de toda a vida.
“Aprender mesmo a gente aprende quando o saber não é mercadoria. Quando é com mestres e mestras, eles não cobram. Eles ensinam para manter o conhecimento vivo. Quando você compartilha o saber, o saber só cresce. É como as águas que ‘confluenciam’. Quando o rio encontra o outro rio, ele não deixa de ser rio. Ele passa a ser um rio maior”. Nêgo Bispo
Bispo almejava valorizar o compartilhamento do saber e da memória ancestral das comunidades quilombolas, até porque esta seria uma forma de combater um dos grandes problemas da sociedade: a mercantilização do saber.
Por isso, apesar de ser docente, palestrante e marcar presença constante no meio acadêmico, ele não aceitaria títulos como Doutor Honoris Causa ou Notório Saber. “Certificado é como um código de barra. Serve para informar um preço, não serve para dizer se sabe ou não sabe.”
O quilombola foi ainda um ferrenho crítico do colonialismo imposto por pelos moldes eurocristãos. “Falo tagarelando, escrevo mal ortografado, canto desafinando, danço descompassado, só sei pintar borrando, meus desenhos são enviesados. Esse é o meu jeito. Não me mandem fazer direito. Eu não sou colonizado. Vivas.”
Uma das atrações do 52º Festival de Inverno UFMG, realizado em 2020, Bispo teceu várias críticas aos governos, ao tratamento dispensado ao indígenas e negros até à Lei Áurea. “Sempre fomos tratados de forma coisificada. Os indígenas são vistos historicamente como selvagens, e os afro, como pertencentes a organizações criminosas.”
“Se você acredita que o fato de um trem ter muitos vagões e você poder escolher o vagão que vai entrar qualifica sua viagem – parabéns! Se você acredita que o fato de um trem ter um maquinista ruim e um sub-maquinista bom, vai mudar o rumo da sua viagem – parabéns! Você deve acreditar, inclusive, que o trem sai da ferrovia e vai andar na hidrovia”, afirmou Nêgo Bispo: “Eu compreendo que um trem só vai para onde os trilhos determinam. Se o Estado é colonialista, todo e qualquer governo será também colonialista”.
“Entre a Lei Áurea e a Constituição de 1988, nossas organizações (aldeias, quilombos e comunidades afins) foram invisibilizadas e silenciadas. A nova constituição recepcionou o discurso de que o Brasil seria um país plural, pluriétnico. Mas isso foi só na teoria. Na prática, não produziu as condições necessárias para que os povos indígenas e africanos da diáspora se consolidassem como expressões de um país constitucionalmente pluriétnico. Eles confluíram na Constituição como organização de direito, mas não trouxeram suas organizações históricas e cosmológicas.”
“Só pode ser decolonizado quem foi colonizado. Qualquer pessoa que se sinta colonizada pode lutar para ser um decolonial”. Mas que “decolonialidade é uma teoria, não trajetória. Nunca existiu um movimento decolonial que tenha atuado de forma resolutiva em prol de um povo. O contracolonialismo é diferente. Os quilombos não foram colonizados”. E completa “O povo da academia que se diz progressista e só lê autores europeus, sim, precisa se decolonizar”.
Fogo!…Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!…Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!…Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!…Queimaram Pau de Colher…
E nasceram, e nascerão tantas outras comunidades
que os vão cansar se continuarem queimando
Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade.
Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade.
Bispo também refutava o uso de alguns termos. Um deles era a ecologia. “Não uso essa palavra. Prefiro cosmologia. Povos africanos na diáspora discutem o cosmo, que é amplo, nele cabe tudo. Ecologia, desenvolvimento sustentável e outros conceitos foram criados dentro da estrutura colonialista para se transformarem em mercadoria.”
Racismo também não fazia parte do vocabulário do intelectual. Ele dizia preferir colonialismo, porque o racismo seria apenas um dos elementos colonialistas. “Quando se fala em racismo, habitualmente as pessoas pensam na sociedade eurocristã. O colonialismo vai além disso. É para todas as vidas existentes”.
Até o bordão “Vidas negras importam”, adotado em todo o mundo, não conquistou a simpatia do pensador. “Não é uma frase quilombola, afro, é uma frase da esquerda, colonialista. Notem que essa ideia é mono. A esquerda diz “vidas negras importam”, e a direita retruca dizendo que vidas brancas importam. Por isso, digo que todas as vidas importam. Não falo só da vida humana. Falo da vida animal, vegetal, mineral…”
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