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O fundamentalismo religioso do estado hebreu

COMENTÁRIO:

O assunto oriente médio, principalmente quando se refere à Israel e à Palestina, costuma render audiência no blog. A maioria dos colegas não tão afeitos as coisas do OM se surpreendem quando se afirma que Israel é um estado teocrático, tão ou mais teocrático do que o Iran, embora formalmente seja considerado um estado laico.

O artigo abaixo, escrito por Uri Avnery, jornalista judeu de esquerda e fundador do movimento pacifista Gush Shalom, permite perceber como Israel vem mudando sua visão de sí próprio e de como o fundamentalismo judeu tem triunfado sobre as demais correntes de pensamento judeu.

O pecado original    

Uri Avnery

Copiado via ASA Associação ScholemAleichem

http://www.asa.org.br/boletim/129/129_h1.htm

                       

Anos atrás, antes da fundação do Estado,  quase ninguém falava de Israel como um Estado judeu, com essa conotação religiosa que querem hoje lhe dar.  Falava-se, sim, de um Estado hebreu.  Essa era a palavra de ordem.

Na escola, adquiríamos um amor ardente pelo país, por sua língua e pela Bíblia (então considerada um clássico da literatura hebraica).  Aprendíamos a olhar com desdém a vida judaica na Diáspora.  Isso, naturalmente, antes do Holocausto.  Em 1933, passei a metade de um ano em Nahalal, a legendária aldeia comunal.  Vendo-a pela primeira vez, fiquei maravilhado com o centro comunitário, a usina processadora de leite e a grande escola agrícola para meninas (frequentada por Moshé Dayan como o único aluno).  Por pura curiosidade, perguntei pela sinagoga e me apontaram uma casa de madeira meio derrubada.  “Tá ali, ó, o lugar dos velhinhos”, me respondeu um dos garotos locais.  Não dá para entender o que aconteceu, pois, naqueles dias, quase todo mundo achava que a religião judaica estava a ponto de desaparecer, junto com aqueles velhos que falavam ídish e se apegavam a este idioma.  Se uma pessoa predissesse que a religião judaica acabaria dominando o futuro Estado, teriam rido dela.

O sionismo representava, entre outras coisas, uma rebelião contra a religião judaica.  Fora concebido em pecado – o pecado do nacionalismo secular que varrera a Europa após a Revolução Francesa.

O sionismo se rebelava contra a halachá, a lei religiosa que proibia os judeus de acorrerem em massa ao novo país.  Segundo o mito religioso, D-us havia exilado os judeus do país como punição aos seus pecados e, assim, somente D-us os poderia trazer de volta.  Por essa razão, praticamente todos os rabinos importantes – tanto os chassídicos como os seus oponentes – amaldiçoavam os fundadores do sionismo.  (Desnecessário dizer que essas maldições – algumas bastante apimentadas – nunca constam dos livros escolares israelenses.)  E a estes se opunham politicamente em todos os foros. 

Mas Ben Gurion, que se recusava a usar a quipá até mesmo em funerais (quando mesmo os ateus a usam como um gesto de respeito pelas crenças alheias), considerou que valia a pena trazer os ortodoxos para a sua coalizão governamental.  Prometeu-lhes, portanto, liberar as poucas centenas de alunos das ieshivot do serviço militar e pagar por seus estudos e por sua manutenção, de modo que estes não seriam obrigados a trabalhar para o seu sustento.

As consequências mostraram-se inesperadas, o pequeno gesto tendo adquirido proporções monstruosas.  Hoje, com esses que se evadem do serviço militar, dava para formar diversas divisões de exército.  Constituem, atualmente, 13% de todos os que, anualmente, estão aptos para o serviço militar.  Além do mais, cerca de 65% dos homens ortodoxos não trabalham de forma alguma e vivem a expensas do dinheiro público.

A situação tornou-se absurda: o Estado está pagando pela manutenção de uma população extensa e sempre crescente de parasitas escudados na Torá que o solapam.  O Estado paga a centenas de milhares de jovens religiosos para mantê-los sem trabalhar.  Dá generosos subsídios para que tenham mais e mais filhos (de 5 a 15 por família), a maioria dos quais também não trabalhará ou servirá ao exército.  Pode-se calcular perfeitamente que a economia, cedo ou tarde, vai  entrar em colapso, juntamente com o estado de bem-estar e o “exército de cidadãos”, o qual se fundamenta no recrutamento.

Esse fenômeno todo é uma autêntica invenção israelense.  No mundo inteiro, os judeus ortodoxos trabalham como todos os demais.  Em Nova York, estão no ramo de aparelhos fotográficos: ao entrar numa enorme loja desse material, todo o local estava ocupado por judeus ortodoxos, com suas roupas tradicionais!  Foi a primeira vez que minha mulher, fotógrafa profissional,  e eu vimos judeus ortodoxos trabalhando.

O campo ortodoxo em Israel é um buracão que engole tudo o que dele se aproxima.  Por exemplo, os judeus orientais oriundos dos países islâmicos, genericamente chamados de sefaradim, embora somente uma fração deles descenda dos que foram expulsos da Espanha em 1492.

A tradição religiosa sefaradi sempre foi mais tolerante do que a ashquenazi.  Isso engloba os ensinamentos de gênios como Maimônides,  médico pessoal do grande Saladino.  Maimônides proibiu seus discípulos religiosos de utilizarem seus estudos como meio de vida e mandou-os sair e trabalhar.  Os sefaradis conservam suas próprias tradições, vestimentas e símbolos.

No entanto, ao virem para Israel, deixaram-se subordinar aos ashquenazis e passaram a aceitar seu fanatismo cego, assim como o caftã e  os chapéus originários da fria Europa Oriental, onde eram usados pelas classes superiores não judias séculos atrás.  O partido dos sefaradis, o Shas, é totalmente subserviente à ortodoxia ashquenazi.  Seu líder “espiritual”, o rabino Ovadia Yosef, baba diante dos rabinos anti-hassídicos oriundos do Leste Europeu, os assim chamados “lituanos”.  Um rabino sefaradi, Haim Amsalem, que, há pouco, se rebelou contra Ovadia e seu partido, reclamando um retorno às tradições sefaradis de tolerância, foi rapidamente excomungado.

Nos primeiros dias de existência do Estado, os ashquenazis ortodoxos, embora extremos em suas crenças religiosas, eram moderados no trato das questões nacionais.  Não apenas deixavam de celebrar o Dia da Independência ou de saudar a bandeira, mas também tratavam de obstruir as aventuras nacionalistas de Ben Gurion, Moshé Dayan e Shimon Peres.  Chegaram, mais tarde, a se opor à anexação dos territórios ocupados, não por qualquer amor excessivo pela paz ou pelos palestinos, mas devido à regra haláchica que proíbe a provocação dos goim, pois isso pode trazer dano aos judeus.

Quando os ortodoxos levantaram seus assentamentos, não o fizeram com qualquer fervor ideológico, mas apenas devido à necessidade de encontrarem alojamentos para a sua prole sempre crescente.  O governo lhes proporcionou terra barata além da Linha Verde.  Hoje em dia, os maiores assentamentos são ortodoxos – Beitar Illit, Immanuel e Modi’in Illit – este último localizado em terra roubada à aldeia árabe de Bil’in.

Graças ao apoio maciço da liderança sionista, o campo “nacional-religioso” cresceu em Israel a um ritmo desnorteante.  Ben Gurion criou um ramo especial no sistema educacional para este, o qual foi-se tornando cada vez mais extremista, assim como o seu braço juvenil, o Bnei Akiva.  Membros de uma geração da comunidade nacional-religiosa passavam à condição de professores da próxima, o que assegurava um  processo de radicalização cada vez mais enraizado.  Com o começo da ocupação, criaram o Gush Emunim (o Bloco dos Fiéis), o cerne ideológico do movimento dos colonos.  Atualmente, este campo é dirigido por rabinos cujos ensinamentos emitem um forte odor de fascismo.

Isso não seria tão terrível se o campo religioso que se opunha ao novo movimento sionista pudesse ter um efeito de neutralização, como aconteceu cinquenta anos atrás.  Mas, na verdade, passou-se o contrário.  Os nacionais-religiosos foram ficando cada vez mais extremados no campo religioso e os ortodoxos mais e mais no campo nacionalista.  As duas facções estão hoje muito próximas e constituem juntas um bloco ortodoxo-nacional-religioso.

Os jovens alinhados a este bloco tratam com desprezo a morna religiosidade de seus pais e admiram o fervor substancial dos ortodoxos.  São seduzidos pelo canto nacionalista, diferentemente dos seus pais, para quem o Estado de Israel não seria diferente de nenhum estado gentio no sentido de lhes proporcionar vantagens e benefícios. Seu judaísmo não se parece com o que existia na Diáspora – nem no modelo ortodoxo, nem no reformista.  É preciso que se diga: a religião judaica em Israel é hoje uma mutação do judaísmo, um credo tribal, racista, extremamente nacionalista e antidemocrático.

Coexistem agora três sistemas de educação religiosa: o nacional-religioso, o “independente” dos ortodoxos e o “el-Hama’ayan” (que se traduz por “rumo à fonte original”) do Shas.  Todos os três financiados em 100% pelo Estado. As diferenças entre eles são pequenas, comparadas às suas similitudes.  Todos ensinam a seus alunos apenas a história do povo judeu, baseada, claro, nos mitos religiosos.  Nada quanto à história do mundo, dos outros povos, para não mencionar as outras religiões.  O Corão e o Novo Testamento representam o fulcro do mal e não devem nem ser abordados.

Os alunos típicos desses sistemas aprendem que os judeus são o povo escolhido (e amplamente superior), que todos os goim são antissemitas cheios de malevolência, que D-us nos prometeu este país e que ninguém mais tem o direito a uma polegada quadrada sequer de seu território. A conclusão natural é que os “estrangeiros” (os árabes, que vivem aqui há pelo menos treze séculos) devem ser expulsos – a menos que isso ponha os judeus sob ameaça.

Sob tal ponto de vista, acabaram-se as diferenças entre os ortodoxos e os nacional-religiosos, entre os ashquenazis e os sefaradis.  Vendo na tela a “juventude das colinas”, que terroriza os árabes nos territórios ocupados, não dá mais para distinguir entre eles, nem pelas suas roupas, nem pela sua linguagem corporal ou pelos seus slogans.

A fonte de todo este mal é, naturalmente, o pecado original do Estado de Israel: a não separação entre Estado e religião, que se fundamenta na não separação entre nação e religião.  A não ser uma completa separação entre as duas, nada salvará Israel da total dominação por essa mutação religiosa.

 

Publicado no site do Gush Shalom.

Tradução de Renato Mayer.

Redação

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