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Panegírico ironico sobre o P.I.G. brasileiro na gringolândia

Numa das passagens mais brilhantes de seu livro “O poder do simbólico” diz Pierre Bourdieu:

O “…campo político exerce de fato um efeito de censura ao limitar o universo do discurso político e, por este modo, o universo daquilo que é pensável politicamente, ao espaço finito dos discursos suscetíveis de serem produzidos ou reproduzidos nos limites da problemática política como espaço das tomadas de posição efetivamente realizadas no campo, quer dizer, sociologicamente possíveis dadas as leis que regem a entrada no campo. A fronteira entre o que é politicamente dizível ou indizível, pensável ou impensável para uma classe de profanos determina-se na relação entre os interesses que exprimem esta classe e a capacidade de expressão de seus interesses que a sua posição nas relações de produção cultural e, por este modo, política, lhe assegura.” (O poder do simbólico, Pierre Bourdieu, Bertrand Brasil, 11ª edição, Rio de Janeiro, 2007)

A idéia de que o campo político pode delimitar o que será ou não discutido não é nova. Isto pode ser feito de duas maneiras.

A primeira é a repetição exaustiva de uma suposta verdade provocando a deslegitimação automática de qualquer contestação ou inovação que se pretenda introduzir na discussão. Isto ocorreu quando a imprensa norte-americana ecoou a alegação de Bush Jr. de que o Iraque tinha armas de destruição em massa, levando o respeitável público a acusar de traição ou de insanidade quem ousasse desafiar o “consenso fabricado”.  Quando a verdade veio a tona, a guerra já havia iniciado e a inexistência de armas de destruição em massa no Iraque já havia se tornado irrelevante.

O “consenso fabricado” pela imprensa se impõe como fenômeno por causa de uma característica do campo jornalístico notada pelo mesmo autor em outra obra:

“Para os jornalistas, a leitura dos jornais é uma atividade indispensável e o clipping um instrumento de trabalho: para saber o que os outros disseram. Esse é um dos mecanismos pelos quais se gera a homogeneidade dos produtos propostos.” (Sobre a Televisão, Pierre Bourdieu, Zahar, Rio de Janeiro, 1997)

Segundo o renomado pensador francês nas “…equipes de redação, passa-se uma parte considerável do tempo falando de outros jornais e, em particular, do que ‘eles fizeram e que nós não fizemos’ (‘deixamos escapar isso!’) e que deveriam ter feito – sem discussão – porque eles fizeram.”  (Sobre a Televisão, Pierre Bourdieu, Zahar, Rio de Janeiro, 1997)

Esta atitude faria com que os jornalistas fiquem submetidos à um verdadeiro “…fechamento mental.” (Sobre a Televisão, Pierre Bourdieu, Zahar, Rio de Janeiro, 1997). Portanto, a autocensura da imprensa, sutilmente produzida pelo campo político e pela própria atividade jornalística, ajuda a delimitar o que será ou não dito no mesmo. Mas existe outra maneira de obter este mesmo efeito.

A segunda forma de limitar o que é dizível no campo político é censurar abertamente a imprensa. Isto é algo comum nos regimes ditatoriais, tirânicos e totalitários. Foi o que ocorreu na Alemanha nazista e no Brasil durante os 20 anos do regime militar.

Porém, as coisas se tornam ainda mais interessantes quando, dentro de uma democracia, o “campo jornalístico” tenta adquirir autonomia política e passa a querer delimitar o que será ou não dito no “campo político”. O fenômeno ocorreu no Brasil após a eleição de Lula e o resultado desta politização da imprensa foi a inevitável derrocada do governo Dilma Rousseff e o apoio incondicional das empresas de comunicação ao incompetente, corrupto, criminoso e ineficaz governo Michel Temer. 

Durante a guerra declarada pela imprensa ao PT a esquerda brasileira cunhou a expressão PIG (Partido da Imprensa Golpista). O acrônimo ganhou até um verbete na Wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_da_imprensa_golpista.

Recentemente Steve Bannon, um assessor próximo de Donald Trump, acusou a imprensa norte-americana de agir como se fosse um partido político https://www.theguardian.com/us-news/2017/jan/26/steve-bannon-media-trump-fox?CMP=twt_gu. O mérito ou não da acusação é irrelevante. O que realmente chamou minha atenção neste caso foi uma refinada ironia: a extrema direita norte-americana está se apropriando de um conceito criado pela esquerda brasileira.

Podemos notar aqui outro fenomeno que foi descrito por Pierre Bourdieu:

“…a oposição entre ‘direita’ e ‘esquerda’ se pode manter numa estrutura transformada mediante uma permuta parcial dos papéis entre os que ocupam estas posições em dois momentos diferentes (ou em dois lugares diferentes): o racionalismo, a  fé no progresso e na ciência que, entre as duas guerras, em França como na Alemanha, constituíram o ideário de esquerda enquanto que a direita nacionalista e conservadora se dava mais ao irracionalismo e ao culto da natureza, tornaram-se hoje, nestes dois países, no coração do novo credo conservador, fundamentado na confiança no progresso, na técnica e na  tecnocracia, enquanto que a esquerda se vê recambiada para  temas ideológicos ou práticas que pertenciam exclusivamente ao pólo oposto, como o culto (ecológico) da natureza, o regionalismo e um certo nacionalismo, a denúncia do mito do progresso absoluto, a defesa da ‘pessoa’, tudo isto banhado de irracionalismo.”  (O poder do simbólico, Pierre Bourdieu, Bertrand Brasil, 11ª edição, Rio de Janeiro, 2007)

A existência relacional obriga os participantes do campo político a modificarem suas posições sempre que seus adversários mudam seus discursos e propostas. É impossível manter claramente as distinções quando os discursos e propostas se tornam idênticos.  A persistência do antagonismo leva os participantes do jogo a adorarem as plataformas e propostas dos adversários apenas para poder manter suas posições dentro do campo político.

Num mundo globalizado, porém, as mutações e trocas discursivas entre direita e esquerda não ocorrem mais apenas no interior do “campo político” de cada país. Não deixa de ser irônico ver um conceito há 13 anos formulado no Brasil (um país mestiço, inferior, sul-americano, periférico, colonizado, terceiro-mundista e subdesenvolvido como dizem alguns jornalistas para humilhar a esquerda nacionalista)  na boca de um norte-americano de extrema direita que acredita na racial dos brancos sobre negros e latinos e defende o destino manifesto dos EUA de liderar as nações.

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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