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Qualificar o debate sobre as cotas

Há uma diferença substancial entre ciência e dogma. Embora, não precisemos ser tão otimistas a ponto de acreditar que dogmas e vocações doutrinárias também não afetem as configurações epistemológicas, a elaboração teórica, o olhar do cientista na prática laboratorial, cabe-nos reconhecer que é pelo método científico que a Humanidade, na maioria das vezes, vem conseguindo ao longo de séculos superar doutrinas mesmo dominantes.

Sem muito mais palavras: o debate sobre as cotas está hoje absolutamente estagnado no embate de dogmas e precisa ganhar o aporte de procedimentos metodológicos, sem os quais, nenhum passo à frente conseguiremos dar.

Uma pergunta simples que se pode fazer aos atuais contendores é: caso pesquisas científicas demonstrassem o contrário do que você sustenta, seria você capaz de repensar sua opinião?

Se a resposta for afirmativa, o contendor estará mostrando uma disposição ao debate mais racionalizado.

Se a resposta for negativa, confirmar-se-á o grau de doutrinação e dogmatismo que pesa sobre suas palavras.

Relativizando um pouco a sentença sobre aqueles que, apesar das evidências teóricas e aplicadas, preferem manter suas posições, podemos, por concessão, dizer que é posssível efetuar um belo debate de ideias em torno de certezas, convicções, doutrinas e filosofias. Mas é preciso que este debate não seja confundido com aquele outro sustentado sobre pesquisas criteriosas e metodologicamente fundamentadas.

Até porque o pensamento pode produzir belas páginas de argumento, convincentes para muitos, e sem nenhuma base sobre a realidade. Mas é preciso que se diga que serão somente um apanhado de ideias esteticamente harmonizadas, mas que não servirão, por exemplo, para tomadas de decisões mais racionais, principalmente, no que se refere às tecnologias sociais.

Estranhamente, no entanto, de onde se esperaria ciência, tem-se doutrina: algumas vozes, mesmo cientistas sociais renomados, em vez de optarem por pesquisas e contribuições positivas – no sentido de ciência mesmo – preferem o jogo retórico, algumas vezes sofístico, não raro sustentado por argumentos agressivos e acusações infundadas sobre “as más intenções” ou “as deficiências de caráter” dos antagonistas.

O debate sobre as cotas, portanto, se quisermos compreender os efeitos de sua adoção na sociedade brasileira, precisa se fundamentar em dados, documentação e, principalmente, observação atenta à realidade atual.

A academia vem, sim, produzindo uma série de pesquisas sobre o tema.

Infelizmente, muitas vezes temos pesquisas viciadas por pre-concepções (há muita confusão, nas áreas humanas, entre hipóteses, que podem ser confirmadas ou não, e pressupostos).

Mas não se pode negar que um bom número de trabalhos pode ser aproveitado para uma reflexão fundamentada sobre os efeitos desta política no país.

 

Problematizando o campo dominante

Em vista do fato de que há claramente, nas midias, um desequilíbrio em relação à distribuição do espaço concedido às vozes que duelam neste debate, a favor dos críticos às cotas (com exceção de alguns blogs, como o Viomundo, e revistas de esquerda, como Caros Amigos), faremos perguntas a partir de algumas teses deste campo dominante.

È uma problematização do consenso.

Abaixo, enumerarei cinco hipóteses (ou teses) daqueles contrários às cotas. Numa primeira visada, praticamente todos os argumentos contrários às cotas parecem variações destas cinco teses.

O ideal é que consigamos localizar, no que se pesquisou até agora nas universidades brasileiras, resultados de investigações que confirmem ou neguem cada uma daquelas teses.

Sem reconhecer, evidentemente, outras questões postas em relação às cotas.

 

HIPÓTESES CONTRÁRIAS ÀS COTAS

1. As cotas raciais contribuirão para reduzir a qualidade do ensino nas universidades e terão como resultado a formação de profissionais de competência duvidosa.

Há pesquisas que comprovem o despreparo dos egressos cotistas?

2. As cotas raciais, por serem um atentado contra a meritocracia, deixarão os melhores de fora.

Esta hipótese é uma variante, por inversão, da primeira. Já há pesquisas, como a realizada pelo IPEA, há três anos, que apontam para a negação da primeira hipótese. Mas é preciso continuar acompanhando os resultados.

3. As cotas raciais humilham os seus beneficiados e contribuem para reduzir a auto-estima do negro.

Há inúmeras metodologias (qualitativas) de abordagem de grupos humanos que poderiam contribuir para se compreender se esta “hipótese” se confirma. Indico a tese de Marlon Leal (Unicamp, 2007) sobre o tema.

4. As cotas raciais produzirão conflitos graves entre alunos cotistas e não cotistas.

Até agora foram relatados incidentes graves envolvendo uns e outros?

5. As cotas produzirão uma reação em cadeia, com a racialização das políticas de Estado no Brasil.

É o argumento mais fatalista, visto que só se sustentaria sobre análises de risco – o que é bem difícil em pesquisas sociais.

A investigação de exemplos concretos deste processo seria o mais indicado. Se houver evidentemente. Se não há indícios e ocorrências deste processo, é porque a hipótese é frágil. Não vale, evidentemente, atribuir às cotas a culpa pelo racismo já existente.

Redação

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