Se a campanha eleitoral brasileira de 2022 foi notadamente marcada pelo uso de Fake News e ferramentas de disseminação de massa, a da Argentina este ano traz uma vertente ainda mais aprofundada do uso da tecnologia para a manipulação digital: a Inteligência Artificial.
De um lado, um vídeo realista de um fato histórico: a guerra das Malvinas, com soldados argentinos e a primeira ministra britânica Margaret Thatcher ordenando “atacar o Belgrano”, episódio no qual deixaram mortos centenas de argentinos. Na peça visual, o peronista Sergio Massa fala: “um país não pode ser liderado por quem admira seus inimigos”.
De outro, um vídeo também realista com Sergio Massa cheirando cocaína. Apesar da aparência real, à diferença do primeiro, este é um episódio falso, também denominado deepfake. Ambas peças midiáticas foram criadas com Inteligência Artificial.
Neste vídeo, ainda disponível no Youtube, uma manipulação com o candidato governista usando a droga.
Esse tem sido um forte tom da campanha eleitoral na Argentina. O vídeo da reprodução do afundamento do navio cruzador General Belgrano na Guerra das Malvinas foi um investimento direto da campanha do ministro da Economia que enfrenta o candidato da ultradireita Javier Milei.
Já o vídeo falso no qual o peronista aparece usando a droga teria sido produzido por apoiadores de Milei, e não sua campanha direta. Assim como este, outros vídeos e fotos manipulam e constroem narrativas com inteligência artificial para o embate político.
Neste vídeo feito com recortes e manipulações digitais por apoiadores de Milei, Massa aparece pronunciando conteúdos chulos e obscenos.
Para a pesquisadora Paula Guedes, doutoranda em Direito e Inteligência Artificial pela Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional do Porto e Mestre em Direito Internacional e Europeu, e membro da Data Privacy Brasil, há uma “clara diferença” entre o uso de IA com propósitos escancaradamente figurativos e com humor para aquelas que atuam confundindo e manipulando os eleitores.
“Nas criações de imagens por IA com conteúdo humorístico, é mais provável que as discussões não sejam levadas para a manipulação do discurso público e criação de desordem informacional”, afirmou, ao GGN. Entretanto, nestes casos, segundo ela, há que se observar critérios de direito de imagem e crimes contra a honra, incluindo a possibilidade de garantia de direitos de resposta.
“Já nos casos de utilização com clara finalidade de enganar o eleitorado, por falsear a realidade, não se trata apenas dessas questões de imagem e honra, mas de desinformação, o que pode levar à manipulação do discurso público, dificuldade de se estabelecer discussões públicas esclarecidas e exacerbação da polarização política, como vemos acontecer nos últimos tempos, inclusive recentemente nas eleições argentinas.”
Assim como no Brasil, na Argentina ainda não há lei ou regulação sobre o uso da Inteligência Artificial para manipular fatos. Atualmente, tramitam no Brasil projetos de lei que regulam e criminalizam tais práticas.
Para a especialista, “é fundamental que haja uma regulação para o uso da inteligência artificial e de plataformas digitais – veículos onde normalmente as produções de IA circulam, já que está claro que estratégias apenas de autorregulação não se mostram suficientes para lidar com as externalidades negativas criadas e/ou reforçadas pelas IAs, especialmente quando veiculadas por plataformas digitais, o que se agravou após a introdução das IAs generativas para o público comum”.
No Brasil, dois projetos de lei caminham para impedir práticas assim: o PL 2338 (atualmente em discussão no Senado Federal) e o PL 2630. Na Europa, o AI Act não só busca exigir que os anunciantes informem se tratar de um uso de Inteligência Artificial, como busca proibir a tecnologia para “vulnerabilidades de grupos específicos de pessoas”, o que poderia ser aplicado a eleitores durante campanhas políticas.
Mas enquanto a tecnologia avança mais rápido do que as legislações, o que os eleitores argentinos vêm recebendo em seus celulares nas últimas semanas não são só mensagens falsas, como vídeos e fotografias reais de cenas que não existem.
Há também o uso de imagens visivelmente ilustrativas, como em fotografias nos quais Sergio Massa aparece como um heroi em cima de um cavalo na Travessia dos Andes de 1817 para enfrentar o Império Espanhol, visitando Nelson Mandela na prisão em 1970, como soldado no campo de uma batalha, ajudando Taylos Swift a recuperar os direitos de seus discos em 2021, entre outras cenas de humor.
A equipe de Massa admite o uso da IA para intensificar o alcance de sua campanha, considerando o impacto e o público que atinge. Em um deles, contudo, o próprio candidato discordou da publicação e pediu a retirada do conteúdo: no qual Milei explicava, de forma realista, como funcionava um mercado de órgãos humanos. O candidato da extrema direita já havia manifestado que – filosoficamente – a prática se encaixaria em suas visões libertárias, mas não saiu em defesa do crime.
Massa concordou com os investimentos de marketing político nas analogias e usos visivelmente figurativos, nos quais os eleitores argentinos conseguem identificar se tratar de peças fictícias. Assim foi feito ao colocar o oponente em trechos de filmes como “Laranja Mecânica” e “Medo e Ódio em Las Vegas”.
Ainda que na última semana de embate eleitoral, a Meta, empresa dona do Facebook e Instagram, emitiu um comunicado ao The New York Times nesta semana informando que começou a exigir que anúncios políticos pagos anunciem, informem na publicação, de que se estava utilizando Inteligência Artificial. Já conteúdos não pagos, não publicitários, não detém essa obrigação de informar o uso da tecnologia.
A posição não é a compartilhada pelos especialistas consultados pelo GGN. “Todo uso de sistemas de IA deve ser acompanhado de clara informação aos eleitores de que se trata de material produzido por IA. O direito à informação é crucial neste momento de debate entre candidatos à eleição em um regime democrático legítimo”, pontuou Paula.
Ela explica, ainda, que mesmo em criações e montagens “claramente falsas”, há riscos ou intenções de manipulação, que são os chamados “cheap-fakes”. “Nesse caso, é também fundamental que haja a informação de se tratar de conteúdo criado, uma vez que ainda podem confundir ou levar a uma má interpretação por parte da sociedade, especialmente aqueles que não tem o acesso à literacia digital – o que é predominante no contexto de desigualdades brasileiro.”
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