Marcos Nobre: a crise de um sistema político fechado em si
Para o filósofo Marcos Nobre, convidado da Flip, as manifestações pelo Brasil colocam em xeque o ‘peemedebismo’, como ele chama a blindagem contra a influência das forças sociais de transformação
Por Leonardo Cazes
O filósofo e professor da Unicamp Marcos Nobre conta que passou 10 dias sem dormir para escrever o e-book “Choque de democracia: razões da revolta”, lançado na quinta-feira e que marca a estreia do selo Breve Companhia, da editora Companhia das Letras, exclusivamente digital e dedicado a textos curtos de ficção e não ficção. O ensaio é uma interpretação sobre os protestos que varrem o país desde 13 de junho e suas consequências para a política e a sociedade brasileira. Em entrevista ao GLOBO, Nobre — que estará na Flip — explica o que chama de “peemedebismo”, a forma encontrada pelo sistema político de se blindar contra as forças sociais e cujo primeiro arranjo já apareceu na Constituinte. O termo foi cunhado em 2009 e é a chave do livro que Nobre terminava de escrever quando foi atropelado pelos acontecimentos. Na sua opinião, há uma necessidade inequívoca de se aprofundar a democracia brasileira. Qual sua avaliação do movimento que tomou as ruas do país desde o início do mês?
Algumas coisas já se sedimentaram no debate público: o movimento não tem uma pauta única, não tem um centro único de organização. São muitas pautas, muitos centros, as redes sociais são muito importantes. As pessoas olham isso e falam: não estamos entendendo. É claro! Se você pegar os movimentos de massa do Brasil, as Diretas ou o impeachment do Collor, havia uma espécie de unidade forçada. Os diferentes grupos abriam mão de suas diferenças para combater um inimigo comum. Agora não existe essa unidade forçada. Não é uma frente com objetivo único. Então, dizem que é desorganizado, mas, na verdade, o que ele não tem é essa unidade forçada. É um movimento inteiramente novo. Qual é o traço de união que ele possui? Para mim, todos esses movimentos são contra o sistema político que se blinda contra as forças sociais. Veja o que aconteceu desde o impeachment do Collor. Primeiro, derrubou-se um presidente. Depois, quando houve a batalha campal entre os senadores Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho, os dois renunciaram aos mandatos. Aí vem o mensalão, em 2005, com vários deputados processados e dois cassados. Em 2007, a coisa começa a mudar. Mesmo com aquela pressão toda sobre Renan Calheiros, ele renunciou à presidência do Senado, mas não ao cargo de senador. Quando vem o José Sarney, em 2009, há a série de denúncias dos atos secretos e ele não perde o mandato nem a presidência do Senado. Claramente existe um fechamento do sistema político em relação a insatisfação da sociedade. Esse processo não ocorreu de um dia para o outro. Ele começa no impeachment, que foi um momento traumático para o sistema político.
Esse foi o peixe que o sistema político vendeu para a sociedade: Collor caiu porque não tinha uma supermaioria no Congresso. O mito da necessidade de uma supermaioria foi a maneira de o sistema político se blindar para continuar funcionando do mesmo jeito de sempre. Esse fechamento em si mesmo é o que chamo de “peemedebismo”, em homenagem ao partido que criou essa figura na década de 1980 para frear as forças sociais na Constituinte. É a própria ideologia do sistema político fechado em si mesmo que cria esse mito da supermaioria. E aí a gente trava, não avança.
Quais são as origens históricas do “peemedebismo”?
O primeiro ensaio do “peemedebismo” se dá na Constituinte. A transição brasileira foi um pacto de elites, um dos maiores apoiadores da ditadura se tornou o primeiro presidente civil. De repente, esse sistema político se vê diante de uma quantidade gigantesca de forças sociais organizadas. Nunca houve tanta participação popular no Brasil quanto na Constituinte. Então, é criado um sistema de filtragem e barragem da pressão popular. Como isso foi feito? As forças sociais eram muitas e diversas, não tinham uma unidade ou um partido que as representassem. Nesse contexto, o “centrão” da Constituinte é fundamental. Primeiro ele enfatiza a fragmentação dos movimentos, ao negociar individualmente com cada um, para impedir a formação de uma unidade. Depois ele diz: tudo bem, vamos aceitar todas essas demandas, mas todas vão precisar ser regulamentadas. Assim, o sistema político retoma para si a efetivação da Constituição. Essa é a primeira figura do “peemedebismo”, embora sem a tecnologia de administração de interesses conflitantes que será desenvolvida nos anos 1990. O “condomínio peemedebista” está no poder há duas décadas. Não é à toa que todos os partidos no Brasil querem ser o PMDB, e por isso são tão irrelevantes enquanto partidos. Na hora de defender os interesses para valer, o que se forma no Congresso são bancadas suprapartidárias, como a ruralista, a religiosa. Contudo, quando Lula assume em 2003, ele não faz uma aliança com o PMDB.
É o meu contraexemplo. O Lula assume com um programa “antipeemedebista”, porque o PT foi concentrando as forças populares de transformação. No momento em que o Lula vai para o segundo turno em 1989 contra o Collor, as forças sociais vão se aglutinando em torno do PT. Isso permitiu que o PT virasse o PT, porque o Lula foi para o segundo turno só com 16,8% dos votos. Então, ele assume o poder em 2003 com dois mandatos: reformar radicalmente o sistema político e reduzir todas as formas de desigualdade. Aí vem o mensalão e todo mundo diz que sem supermaioria ele corre risco de impeachment. O sistema político chantageia o tempo inteiro com a supermaioria. Só em 2005 Lula faz o pacto com o “peemedebismo”, que é o mesmo modelo de acomodação de interesses do governo Fernando Henrique. No primeiro momento ele recusou essa lógica, mas depois aceitou e foi além. Porque o Lula construiu uma tal supermaioria que aniquilou a oposição. Por que faz isso? Porque, no fundo, o PSDB também é um partido “peemedebista”. Aqueles quadros do governo Fernando Henrique, principalmente na economia, são o que eu chamo de “cordão sanitário”. O acordo foi: nas áreas estratégicas, como a Fazenda e o Banco Central, vocês não podem mexer, mas ficam com todo o resto. No fundo, o “peemedebismo” significa que se você se organizar e tiver peso eleitoral suficiente você ganha um quinhão correspondente no Estado onde você vai instalar a sua máquina e se reproduzir. Ao mesmo tempo, você ganha um poder de veto contra qualquer assunto que vá contra os seus interesses. As mudanças promovidas pelo governo Lula, como aumento do salário mínimo, a reforma do crédito e o Bolsa Família, foram feitas porque não encontraram vetos no sistema político. Enquanto o PT estava na oposição havia uma força política organizada que dizia que o “peemedebismo” não era algo normal. Quando o Lula faz o pacto, há uma naturalização do “peemedebismo”.
A reforma política seria a saída para superar essa crise do “peemedebismo”? O que se abre com esse movimento é a possibilidade de formação de uma frente antipeemedebista para reorganizar a política institucional. Se isso vai acontecer ou não é outro problema. A reforma do sistema político não tem nada a ver com reforma política. A reforma política que querem fazer é uma reforma eleitoral, que é importante, mas é só parte da história. A ideia de que você vai fazer uma reforma eleitoral e vai resolver todos os problemas do sistema político é um tanto ilusória. As manifestações em si mesmas são muito positivas porque já mudaram a cultura política do país, reorganizaram forças sociais e mostraram que o sistema político está em descompasso com a sociedade. Esses protestos também dizem que não dá para continuar com um sistema político encastelado no Estado, que trava as transformações. Um sistema “peemedebista” polarizado é uma desgraça, mas pelo menos tem dois polos. Um sistema político “peemedebista” que só tenha um condutor faz com que a oposição migre para dentro do governo. Quem nasceu em 1995 nunca viu inflação e nunca viu um debate político polarizado. Então como você faz formação democrática de uma geração desse jeito? É uma tragédia para o país.
Essa crise do “peemedebismo” também é uma crise do lulismo?
A sociedade já está em um novo modelo e o sistema político ainda não. É o modelo que eu chamo de social-desenvolvimentismo, por oposição ao nacional-desenvolvimentismo que houve no país entre as décadas de 1930 e 1980. O resultado desse processo histórico, iniciado no governo Fernando Henrique, é ambíguo porque é ligado à democracia e coloca a necessidade de reduzir a desigualdade no seu centro, mas foi conquistado a duras penas em uma aliança com o “peemedebismo”. O lulismo é uma figura do “peemedebismo”, um acordo novo que elimina a oposição, ao mesmo tempo em que é também uma figura desse social-desenvolvimentismo. As ruas estão dizendo que houve enormes avanços sociais, mas que, agora, ou se aprofunda a democracia ou não vai dar. Uma das características fundamentais desse movimento é a velocidade e a intensidade. É incrível como tudo muda de um dia para o outro. O sistema político ficou completamente desarmado. Os políticos ficaram 20 anos se blindando contra as ruas e aí vêm as ruas e passam por cima deles. Além do Movimento Passe Livre, os comitês populares da Copa foram fundamentais nas mobilizações. Eles não são ligados a nenhum partido e possuem uma independência e autonomia que outros movimentos perderam. São forças que não fazem parte do consenso social-desenvolvimentista colocado pelo governo Lula, de que só havia uma única forma e um único ritmo possíveis para fazer as transformações. Encontro com o autor: Dia 6, às 21h30m, Marcos Nobre participará da mesa “O povo e o poder no Brasil”, com André Lara Resende.
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