Agronegócio

Agronegócio x agricultura familiar, a interface, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Agronegócio x agricultura familiar, a interface

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Uns vinte anos atrás, numa viagem a trabalho para o Alto Paranaíba (MG), no café da manhã, conheci um inglês comerciante de sementes. Ele me atentou para um fato que, até então, me tinha passado desapercebido, a sobreposição do agronegócio sobre a agricultura tida como familiar. Naturalmente, ele não pôs as coisas dessa forma. Ele simplesmente relatou que, quando voltava à Europa e comentava que, no Brasil, cenouras eram plantadas embaixo de pivôs, os europeus achavam que ele estava mentindo. Esse comentário foi a ponta de um fio que me permitiu desenrolar a meada toda. A questão é que, dado às dimensões continentais de nosso território, aliadas à concentração populacional em cidades de porte médio para grande, quando não megalópoles, imaginar que minifúndios possam abastecer a população chega a ser ingênuo.

Um pivô de irrigação é um aparelho com um ponto central de captação de água e um braço articulado com mais de 500 m de comprimento. A cada intervalo, há uma torre que se assenta sobre pneus, tal que o braço do pivô possa seguir fielmente as irregularidades do solo, criando um ambiente de alta produtividade com até 120 ha de área em círculo. Uma lavoura manual de cenouras, por exemplo, produz, quando muito, 500 caixas por hectare, enquanto que, embaixo do pivô, no mínimo, obtêm-se 2.100 caixas por hectare. Uma instalação dessas requer um fornecimento de água de até 150 m³/h, ou seja, uma piscina de 16 m x 10 m x 1 m por hora. É um equipamento portentoso, cuja instalação não fica por menos de US$5.000,00/ha. Parece evidente que agricultores assentados jamais terão acesso à semelhante tecnologia.

Some-se a tradicional isenção de impostos sobre alimentos ao mercado pujante e constante e tem-se o cenário necessário a atrair os empresários rurais como moscas sobre o mel.  O resultado é que somente um grupo de Minas Gerais produz 5,4 mil toneladas de cenouras por semana, abastecendo São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Ribeirão Preto, Campinas entre muitas outras, somando mais de setenta milhões de consumidores. Na rotação de cultura, plantam-se beterrabas, ervilhas, vagens, cebolas, batatas, entre outras hortaliças que, tradicionalmente, eram produtos da agricultura familiar. Como se não bastasse, ainda para concluir a rotação de cultura, plantam-se milho para silagem e capim para feno, que alimentam vacas leiteiras, numa produção de mais de cem mil litros de leite por dia. Se elas não pertencem ao mesmo grupo, são de pecuaristas afiliados.

A Nestlé, por exemplo, baixou dos vinte e três mil fornecedores dos anos 1990 para menos de quatro mil, com tendência a reduzir mais. Isso acontece porque a coleta no sistema conhecido por “milk run”, em que os caminhões vão buscar leite nas propriedades, precisa ser racionalizado. Como, por lei, o leite precisa ser armazenado em baixa temperatura, nos tanques de expansão, se a produção for concentrada, menores os custos de coleta e, principalmente, menor a probabilidade de o leite se estragar. O mesmo se pode dizer  das granjas, especialmente, as de porcos, havendo pocilgas de mais de 20 mil matrizes na região de Mineiros (GO), o que garante entre 200 mil e 240 mil animais abatidos por ano. Com 100 kg por animal, tem-se 24 mil toneladas de produção anual, contra 100 mil toneladas de insumos num só estabelecimento.

Resumindo, toda a cadeia, da produção à distribuição, está montada para que o agronegócio se instale, expulsando o agricultor familiar. Também parece lógico que, com tamanho investimento, na falta de mercado interno, ou por câmbio favorável, essas estruturas superlativas busquem mercado no resto do mundo, cimentando a posição de economia exportadora que o Brasil atribuiu a si próprio. Não existe a menor probabilidade de tamanha estrutura reverter-se, sendo o grande desafio aprender a lidar com isso, ao mesmo tempo em que se visa alimentar dignamente nossa população. A solução parece ser criar uma interface que mitigue os conflitos entre a agricultura familiar e a empresarial.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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