Análise

Planejamento Estatal e Mercado, por Fernando Nogueira da Costa

Planejamento Estatal e Mercado

por Fernando Nogueira da Costa

De acordo com uma definição de dicionário, “planejamento” é o pretendido e alcançado por um plano cuidadoso feito de antemão”. Nesse sentido, todas as pessoas físicas e jurídicas planejam, quando pensam cuidadosamente naquilo possível de fazer no futuro.

Qualquer tomada de decisão econômica se relaciona com o futuro. As transações levam tempo e, com o passar do tempo, algumas circunstâncias iniciais podem ter mudado. Dessa forma, os planos frequentemente não são realizados ou têm resultados diferentes da intenção original.

Em uma economia de mercado, as ações deliberadas do Poder Público, principalmente do Estado, devem se combinar com os planos do setor privado. Os planos podem ser de vários tipos.

A versão soviética era de “planejamento de comando centralizado”. As autoridades emitiam instruções à cada administração subordinada. Dizia-lhes quais bens e serviços fornecer, de quem obter os insumos necessários e entravam em um detalhamento minucioso incapaz de funcionar bem em um sistema complexo com interações entre diversos componentes.

Depois, surgiu o “planejamento indicativo”. No caso, o Estado usa influência, subsídios, concessões, impostos, mas não obriga ninguém a acatar os incentivos.

Há também o “planejamento setorial”. Diz respeito, por exemplo, à rede viária, ao transporte urbano, ao produtores e distribuidores de energia, ao serviço nacional de saúde. Não precisa estar relacionado a nenhum plano geral para a economia como um todo.

Então, existem diferenças de propósito, razão, objetivos. Um planejamento impõe as prioridades do Comitê Central, para substituir ou combater as forças espontâneas do mercado, ou seja, deliberadamente alcançar aquilo sob outra forma inalcançável. Outro adota estratégia econômica de tirar o atraso histórico do país saltando etapas. Comparam-se a uma Economia de Guerra com uma mobilização em massa de recursos materiais e humanos para criar uma base industrial pesada no menor tempo possível.

Essas experiências são comparadas a programas de rápido desenvolvimento em alguns países do Terceiro Mundo, desde os preâmbulos da II Guerra, para enfrentar a Grande Depressão. Eram tentativas conscientes de transformar a economia agrícola do país em uma economia industrial. Hoje, vivenciando a 4ª. Revolução Tecnológica, nesses países, inclusive o Brasil, o desafio é transformar essa indústria em uma Economia Digital.

Em tais casos históricos, constatou-se ser um equívoco considerar O Mercado sempre como um inimigo, a ser limitado ou combatido. Isso foi visto até mesmo nas Economias de Guerra do Ocidente: as matérias-primas fornecidas e a produção era cobrada já com os preços prefixados. Os negócios em mercado paralelo, com venda livre de mercadorias controladas, eram tratados de maneira racista como “crimes do mercado negro”.

No entanto, outros tipos de planejamento do setor público não têm, ou precisam ter, tal hostilidade ao mercado, podem coexistir sim com ele. O motivo para planejá-los relaciona-se, em parte, ao chamado de bens públicos, por exemplo, a rede de estradas, iluminação pública, redes de água e esgoto, coleta de lixo, etc.

Em outra parte, há setores geradores de externalidades. Nesses casos, a conta de lucros e perdas das empresas produtoras constitui um critério equivocado de avaliação de seu prosseguimento ou não.

Em bases estritamente econômicas, os interesses privados e os interesses coletivos conflitam entre si. Os exemplos são muitos, entre outros, o transporte público urbano, os portos e os aeroportos estão sob responsabilidade do setor público até mesmo em uma economia de mercado de referência mundial como é a dos Estados Unidos.

A proteção ambiental é outro fator importante. Assim, em vários países, o desmatamento constituem um desastre ecológico. Por exemplo, no Mar do Norte, é essencial agir para preservar os estoques de peixes, enquanto o lucro privado de curto prazo dita a pesca. O mesmo ocorre com as queimadas e o corte de árvores na Amazônia.

Existem também monopólios naturais, onde a competição é desnecessária ou desperdício. São exemplos, entre outros, eletricidade, água, correios, e até recentemente rede de telefones fixos. A escolha nesse caso reside entre a propriedade e o controle do Estado ou um monopólio privado regulado.

A escolha pode ser influenciada por considerações de política pública. Assim, caso se deseja fornecer um serviço postal ou telefônico abrangente, uma rede de banda-larga, ou abastecer todas as moradias, inclusive as mais remotas de um país continental, com água pura, então o serviço público deve receber certa prioridade. Sempre foi evidente algumas atividades citadas não serem lucrativas e atraentes para a iniciativa particular.

Uma confusão é gerada pela incapacidade ideológica de distinguir entre responsabilidade pelo fornecimento de um bem ou serviço e a natureza jurídica da empresa fornecedora. Assim, por exemplo, as autoridades públicas devem garantir o lixo da cidade ser coletado e eliminado, mas isso não exige os lixeiros serem funcionários públicos.

Outro exemplo é quando a responsabilidade pela construção de estradas é assumida pelas Unidades Federativas. Depois, são privatizados o pedágio e a manutenção das rodovias estratégicas para o desenvolvimento estadual.

Há setores para os quais as considerações de lucratividade econômica podem não se aplicar a todas faixas de renda da população de um país com grande desigualdade social. Educação, saúde, pensões ou aposentadorias, são amplamente considerados como adequados para o planejamento e a provisão pelas autoridades públicas. No entanto, tanto a educação, quanto a saúde, bem como Previdência Complementar, para as faixas mais elevadas de renda, nas Américas, são mercantilizadas.

Finalmente, há as espécies de planejamento destinadas a facilitar e estimular a operação de empresas privadas voltadas para o mercado. Isso vai desde o investimento em infraestrutura e logística até o chamado de planejamento indicativo. Este não é obrigatório nem imposto, mas ajuda a preencher uma lacuna evidente na Doutrina do Livre Mercado Puro. Não se preocupa com o investimento em larga escala, acima da possibilidade financeira de entes privados, por exemplo, em usinas hidrelétricas com longo prazo de maturação.

Planejamento indicativo, reforçado por incentivos fiscais e pressões não oficiais da demanda social, bem como a existência de um mercado a ser explorado, poderia ser descrito como uma forma de conluio organizado pelo Estado. Exige o papel dele em garantir uma configuração macroeconômica consistente, intersetorialmente, ou tomar medidas anticíclicas, superando uma fase recessiva.

No passado, na Era Nacional-Desenvolvimentista (1940-1980), antes da Era Neoliberal (1980-2021), intercalada pela Era Social-Desenvolvimentista (2003-2014), medidas de planejamento abrangente costumavam ser aceitas quase universalmente como necessárias ao crescimento intensivo. Depois, e até agora, o planejamento passou a ser vigorosamente questionado pela ideologia Laissez-Faire revivida pelos neoliberais. De maneira simplória, ela considera a economia ser capaz de autocorreção por si só.

Portanto, apenas em uma de suas versões – o de comando centralizado – o planejamento é visto como uma contradição do Estado frente ao mercado. Em todas as outras, eles se complementam ou os planos são operacionalizados pelo mercado.

A economia contemporânea contém milhares de empresas atuantes em mineração, manufatura, agricultura, construção, transporte, distribuição, restauração, serviços. Como, em uma economia centralmente planejada, nem a produção nem o fornecimento de insumos seriam baseados em relações horizontais com negociações de mercado, cada uma dessas milhares de empresas precisaria receber, de alguma unidade na hierarquia de planejamento, verticalizada “de cima para baixo”, instruções específicas sobre o que produzir, quais materiais obter e de quem.

Outras metas do plano se relacionariam com a produtividade do trabalho, salários, custos, utilização de materiais, investimento, progresso técnico, economia de combustível – e muito mais.

O número de produtos e serviços identificáveis diferentes, totalmente desagregados, é estimado em milhões. Essa escala absoluta da tarefa dos planejadores centrais é, provavelmente, a fonte mais importante de ineficiência e inconsistência entre os setores.

Seria difícil, senão totalmente impossível, chegar tecnicamente a um plano consistente sem defasagens temporais. Os insumos necessários teriam de corresponder a cada produto pretendido pelo Comitê Central.

Planejamento Estatal e Mercado têm sido vistos como opostos incompatíveis, tanto por socialistas sectários quanto por anticomunistas dogmáticos. No entanto, uma mistura dos dois é essencial em qualquer sociedade moderna.


Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Conduzir para não ser Conduzido: Crítica à Ideia de Financeirização” (2021). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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