Portland, USA: ensaio de um regime de exceção, por Ruben Rosenthal

do Chacoalhando

Portland, USA: ensaio de um regime de exceção, por Ruben Rosenthal

Trump poderá fazer uso de poderes de emergência secretos, caso esteja ameaçado de perder as eleições de novembro.

Imagens recentes da cidade de Portland, no Oregon, mostraram agentes federais usando uniformes de soldados do exército norte-americano, sem identificação pessoal, “sequestrando” e jogando manifestantes dentro de vans, estas também sem identificação. A explicação posterior foi de que a intervenção contra os protestos de rua apoiados pelo Black Lives Matter partiu de ordens explícitas de Donald Trump ao Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês). O pretexto alegado pelo presidente foi o de proteger monumentos nacionais e prédios federais.

Deve-se ressaltar que a Prefeitura de Portland não esteve omissa em face dos protestos que haviam tomado conta da cidade a partir de 25 de maio, na sequência do assassinato de George Floyd por policiais em Minneapolis. Em 30 de maio, o prefeito decretara estado de emergência na cidade, estabelecendo o toque de recolher noturno.

Com a intervenção do DHS, Portland se tornou um laboratório da violência do Estado contra opositores das políticas do presidente, com consequências imprevisíveis para as liberdades civis no país. Trump já anunciou que poderá também enviar “tropas” federais a Chicago e outras cidades controladas pelo Partido Democrata.

As ações de intimidação trazem ecos do período que antecedeu à chegada de Mussolini ao poder Itália, quando grupos paramilitares atacavam manifestantes de esquerda. A hashtag #PortlandKidnapping (sequestros em Portland) viralizou no Twitter, trazendo  comparações com os desaparecimentos de opositores durante a ditadura de Pinochet no Chile.

A advogada Elisabeth Goitein tem sido uma das principais vozes a alertar contra os excessos antidemocráticos que vêm sendo cometidos na administração Trump. Goitein é co-diretora do Programa de Segurança Nacional e Liberdade do Brennan Center for Justice, associado a Faculdade de Direito da Universidade de Nova York.

Segundo Goitein relata em artigo de 24 de julho,  “O exército privado do presidente“, anteriormente Trump já convencera governadores de 11 Estados (10 destes comandados pelo partido do presidente) a enviarem unidades da Guarda Nacional a Washington para intervir em protestos, também resultantes da morte de George Floyd por sufocamento. As manifestações foram essencialmente pacíficas, com a ocorrência de incidentes isolados de vandalismo e saques.

O envio da Guarda Nacional dos Estados foi uma forma de Trump contornar a legislação de 1878 conhecida como Posse Comitatus Act.  Este Ato visa impedir que tropas federais participem de ações de imposição da lei e da ordem, sem a expressa autorização do Congresso. A lei se aplicaria também à Guarda Nacional, caso Trump houvesse federalizado as ações conduzidas, mas ele evitou fazer isto, não emitindo ordens diretas aos agentes.

Já no caso dos distúrbios em Portland, seria mais complicado para Trump tentar repetir o mesmo expediente adotado em Washington, pois os governadores são ciosos de suas autonomias, e não estariam dispostos a enviar tropas para outro Estado, considera a advogada. Então, em nova tentativa de burlar a legislação, Trump recorreu ao DHSDepartment of  Homeland Security.

Agentes do DHS em uniformes do exército atuam contra manifestantes em Portland \ Foto: Beth Nakamura / The Oregonian via AP

Contra a vontade do prefeito de Portland e do governador do Oregon, o DHS enviou dezenas de agentes para reprimir os protestos. A justificativa foi de proteger propriedades federais, o que dispensa o consentimento das autoridades locais. Como os agentes do DHS não são membros das forças armadas, Trump não cometeu violação do Posse Comitatus Act, pelo menos na letra da lei.

No entanto, o uso de agentes do DHS como uma força paramilitar viola o princípio que fundamentou a legislação promulgada em 1878, ou seja, limitar os poderes de intervenção do governo federal contra seus opositores internos. Elisabeth Goitein teme que no dia das eleições presidenciais em novembro, Trump possa fazer uso de suas forças paramilitares como forma de inibir o comparecimento dos eleitores às urnas, particularmente em locais favoráveis ao partido Democrata.

Segundo o relato de Goitein, a Lei de Emergências Nacionais que entrou em vigor em 1976 controla a declaração do estado de emergência pelo presidente.  Na ocasião, o Congresso incluiu uma cláusula que garantia ao legislativo o poder para sustar a vigência da aplicação da emergência. No entanto, em 1983 a Suprema Corte determinou que Congresso não poderia reverter a decisão presidencial, exceto se conseguisse obter uma maioria de dois terços, a qual o presidente não poderia se contrapor com seu veto.

O legislativo tentou se opor à decisão de Trump, quando o presidente declarou emergência nacional para conseguir fundos para construir um muro na fronteira com o México. Mas Trump pôde vetar a decisão, por não ter sido obtida a maioria qualificada no Congresso. Trump agora ameaça fazer uso da declaração de emergência, para exigir que empresas norte-americanas se retirem da China.

Brennan Center identificou 123 poderes legais que são concedidos ao presidente quando ele declara uma emergência nacional, sendo que a maior parte requer apenas sua assinatura para entrar em vigor. Acrescentem-se a estes, outros 13 poderes que são disponibilizados quando a declaração provém do Congresso. A relação completa pode ser acessada na página do Brennan Center.

Os poderes de emergência cobrem os setores militar, de saúde pública, comércio, transporte, comunicações, lei criminal, transações financeiras e  pagamentos federais, dentre outros. Obama e Trump recorreram aos poderes emergenciais para bloquear aumentos salariais dos funcionários federais. Um dos estatutos permite que o presidente autorize a realização de testes de armas químicas ou biológicas em pessoas, sem o consentimento delas. Várias declarações de emergência vigoraram por mais de 10 anos.

Não bastassem os poderes de emergência já conhecidos de que o executivo norte-americano dispõe, e as artimanhas a que Trump recorre para contornar a legislação existente, outras ameaças pairam sobre as liberdades civis nos Estados Unidos. O ex-senador Gary Hart, candidato presidencial Democrata (em 1988), alertou em artigo recente no New York Times que o presidente poderá recorrer a poderes de emergência secretos, desconhecidos até mesmo da maior parte dos congressistas.

Hart teme que Trump possa invocar estes poderes caso esteja na iminência de perder as próximas eleições. O ex-candidato presidencial salientou ainda, que o pouco que se sabe sobres estes poderes obscuros se deve ao trabalho do Brennan Center for Justice.

De fato, Elisabeth Goitein vem alertando sistematicamente nos últimos anos sobre os riscos que os poderes presidenciais secretos representam para as liberdades civis. Alguns destes poderes estariam mais de acordo com um sistema ditatorial, enfatiza a advogada. No entanto, ela aceita que em casos de reconhecida emergência nacional possa ser necessário que o presidente disponha de uma legislação flexível, que possibilite que ele lide adequadamente com uma situação crítica, mas sempre com a devida checagem pelo Congresso.

Os poderes secretos do presidente dos Estados Unidos estão classificados como “documentos para ação presidencial de emergência”, conforme artigo de Goitein e Boyle no New York Times. Documentação emitida ainda na década de 70 admitia a suspensão do habeas corpus pelo presidente, contrariamente ao estabelecido na Constituição do país, que requer a concordância do Congresso.

Constava também dos “documentos para ação presidencial de emergência” da época, a autorização para a realização de buscas e detenções sem mandato judicial, como também a declaração de lei marcial no país. Revisões periódicas são feitas nos documentos, que passam pelo crivo do Departamento de Justiça e necessitam da aprovação final do Conselho de Segurança Nacional.

É provável que os documentos revisados, que estabelecem as ações de emergência a que o presidente pode recorrer atualmente, continuem a incluir não apenas estas medidas citadas, mas também outras que devem provavelmente afetar de forma negativa as liberdades civis no país. Apenas quando Trump ou algum outro presidente recorrer a estas ações, é que a população e mesmo os congressistas tomarão conhecimento  de que elas existem.

Neste mesmo artigo de abril de 2020, anterior portanto à intervenção em Portland, Goitein e Boyle já expressavam o temor de que Trump possa vir a se aproveitar da pandemia da Covid-19, para fazer uso pela primeira vez no país do poder concedido pelos documentos secretos.

Por este motivo o Brennan Center defende que, antes das eleições presidenciais de novembro, o Congresso deveria ter acesso à integra da documentação de exceção, e checar se ela está de acordo com a Constituição federal. Gary Hart compartilha deste temor, e também defende que o Congresso organize um comitê especial, para investigar e revelar quais são os poderes secretos de que o presidente dos Estados Unidos dispõe. Antes que seja tarde demais.

O autor é professor aposentado da Universidade Federal do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

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  • Era uma vez a maior democracia do mundo. Tudo mentira, enganação. O primeiro boçal que chega ao governo tem o poder usar da força pra se perpetuar na teta.

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