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Samba edipiano, por Walnice Nogueira Galvão

Samba edipiano

por Walnice Nogueira Galvão

Três canções mostram semelhanças ao tratar de um raro tema de nosso cancioneiro: o tema edipiano. São elas Menino de Braçanã (1953), Isaura (1945)e Trem das Onze (1964). Cada uma vem de uma década diferente, mas todas expõem a tensão entre Eros e uma instância repressiva (mãe, trabalho) que se disputam de fato e de direito, ou ao menos na cabeça do sujeito que canta em primeira pessoa.

Assumindo as três a forma de diálogo, a mais tosca, Menino de Braçanã, hesita quanto ao interlocutor (“moço”). Nas outras, o diálogo se dá com a amada que procura reter o sujeito, em prejuízo da mãe em Trem e do trabalho em Isaura. Quanto a Trem e Menino, ressalta e faz rir o apelo à mãe que aguarda em casa, no recesso do lar. Pode-se falar aqui em “samba edipiano”.

Outra aproximação pode ser feita com o samba que coloca a contradição entre lar e boemia. Nesse caso, se a instância repressiva é o lar, projeção que amplia o útero materno, a libertária é a boemia. Há até casos em que o impulso de violência é explícito e a agressão latente, como em alguns clássicos de Lupicínio Rodrigues (Nervos de aço, Brasa, A mulher que ficou na taça).  Ou então de outros especialistas em dor-de-cotovelo , como Adelino Moreira  e Waldick Soriano – este, autor do notável Eu não sou cachorro não. Ou ainda em muita marchinha. Mas nenhuma dessas canções chega a ser tão regressiva e edipiana quanto Mamãe eu quero, infalível nos bailes e nas ruas durante o carnaval.

Um filão original opera outro deslocamento: o samba nostálgico, indeciso entre a saudade do torrão natal e as quimeras da cidade grande. Aqui, o torrão natal figura como expansão crescente do útero materno, um grau a mais após a ampliação para o lar. É modulação comum no cancioneiro, sobretudo nordestino, e transbordando do samba. Esse é um dos mais belos monumentos à maior migração da história brasileira, que transferiu milhões de nordestinos rumo ao Sudeste, com o fito de doar sua força de trabalho para a industrialização de São Paulo.  Gerou entre muitos outros um artista extraordinário, o grande Luiz Gonzaga, que com sua voz possante e ligeiramente anasalada marca o clímax. Asa branca certamente é um “hino nacional”, mas muitos outros compositores cuidaram de expressar as complexas emoções envolvidas no processo.

Em geral cantam a oscilação dolorosa e veemente entre duas pulsões, a de partir e a de ficar. Mas raramente o sujeito sente remorso ou decepção, é só ouvir Luiz Gonzaga em Pau de arara: “Eu penei/ mas aqui cheguei”. Note-se o aqui. As canções dão voz à nostalgia do que ficou para trás, mas não ao desejo de regressar (que nunca se concretiza).

Esse traço tão singular já está explícito num dos primeiros a surgir, Peguei um Ita no Norte  (1945), de Dorival Caymmi, no percurso de Belém para o Rio: “Talvez eu volte pro ano/ talvez eu fique por lá”. E na conclusão, resignada mas nem triste nem culpada: “Nunca mais voltei por lá/ pro mês inteira dez anos/Adeus Belém do Pará”. Asa branca ainda assegurava nos últimos versos o retorno para o sertão assim que chovesse. Mas isso logo se perde, embora Caymmi já encarasse com humor o dilema. Sabia do que estava falando: o próprio compositor já se mudara bem cedo para o Rio de Janeiro, aos 23 anos, em 1938. Seu exemplo seria seguido por muitos autores que nos brindam com lindas canções sobre o tema.

Bela meditação sobre a condição de emigrado é Lamento, de Dominguinhos e Gilberto Gil, quando a dor do desenraizamento já ultrapassou seu aguilhão em carne viva, sendo sublimada de várias formas. Ali, o sujeito ensimesmado, solitário, calado, diagnostica o resultado do desterro como diminuição de humanidade. Ainda assim, continua excluído, não se integra na boiada urbana e se vê como “rês desgarrada”. Há melancolia, não propriamente saudade da vida pregressa, de que guarda traços concretos e afetivos. Ele aceita que chegou onde queria, mas preservando traços da identidade anterior no âmago do corpo, e enuncia com graça: “não gosto de cama mole/ não sei comer sem torresmo”.  

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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