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A herança de Lula e o risco de elegermos um “Berlusconi” presidente do Brasil

Li no blog Palavras Diversas a tradução da entrevista concedida por Eric Hobsbawn a Martin Granovsky, publicada no jornal Página 12 em 29 de março de 2009. Na entrevista, o maior historiador do século XX comenta o cenário sócio-político na América Latina e em certo momento, ao se remeter ao Brasil, estabelece contraponto entre as políticas sociais dos governos Lula e FHC.

Mesmo ressalvando que os feitos de Lula não foram suficientes para acabar com a “horrorosa” desigualdade social no país, o que ainda demandará tempo e investimentos, afirma que “Lula é o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil. E ninguém o havia feito nunca na história desse país. Por isso hoje tem 70% de popularidade, apesar dos problemas prévios às últimas eleições. Porque no Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles, desenvolvendo ao mesmo tempo a indústria e a exportação de produtos manufaturados.”.

Em artigo do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos publicado na revista CartaCapital desta semana, ele diz que a herança de Lula foi que “No poder o ex-operário realizou a maior ruptura dos últimos 80 anos da República.” Em outras palavras, Lula teria contribuído para amenizar umas das grandes contradições do regime republicano brasileiro, qual seja, a de ser uma “república sem povo”.

Investimento sistemático em políticas sociais de inclusão, ampliação do mercado consumidor interno, redução da miséria, aumento significativo da classe média, criação de 15 milhões de empregos formais. Bolsa Família, Brasil Sorridente, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Programa Universidade para Todos (PROUNI)…

Tudo parece confirmar as impressões dos professores Hobsbawn e Wanderley dos Santos. Mas em meio a esses avanços sociais incontestes, fui pego por uma pergunta inquietante: para onde caminha a nova classe média brasileira? A nova classe média brasileira tende a ser conservadora, disse mais ou menos com essas palavras, Luis Nassif. Com estilo mais irônico e provocativo, no “longínquo” 09 de agosto de 2010, Paulo Henrique Amorim indagava: A classe “C” vai eleger a Dilma. E depois, o Berlusconi?

Paulo Henrique Amorim alertava para a formação de um público altamente despolitizado no Brasil, fenômeno que para mim, só mostrou-se de maneira mais contundente durante a campanha eleitoral e as discussões enviesadas levados a público sobre direitos homossexuais, aborto e crenças religiosas, por exemplo.  Neste momento, viu-se que a cidadania no país, fortalecida no governo Lula, tem de percorrer ainda longo caminho até ser efetivada.

Ontem (18/01) no final da tarde, ao caminhar pelas ruas do centro de Natal/RN, foi possível ver um retrato bastante aproximado desse desafio. Integrantes do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira(IPCO) hasteavam bandeiras e brasões, bradavam palavras de ordem e recolhiam assinaturas dos transeuntes contra a terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). Até aí, nada de anormal. Vivemos num país que ao menos na teoria (na prática, há cenas lamentáveis, como estas aqui e aqui) respeita a liberdade de expressão.

No entanto, depois de parar cinco minutos e observar os argumentos apresentados pelos “manifestantes” e a recepção despolitizada da população a eles, assinando aquele Abaixo-assinado, sem questionamentos adicionais, compreendi porque o PHA alertou para a preocupante despolitização da população brasileira. Entendi melhor a votação de Serra em Natal (ganhou de Dilma no segundo turno), e ainda porque mesmo derrotado, conquistou 44% dos votos válidos.

Há muita gente, inclusive entre meus colegas de profissão (professores) que não compreendem que o Brasil é (ou deveria ser) um estado laico.  Ou seja, que não somos um estado teocrático, onde as concepções e crenças de determinado grupo social orientam o conjunto de leis que regem as relações em sociedade no país. Assim, católicos, evangélicos, umbandistas, ateus, agnósticos… têm liberdade para manifestar suas convicções e idiossincrasias, mas não para impô-las a todos. E é exatamente isto que a grande maioria da população brasileira, seja por falha do sistema educacional, seja pelo investimento grandioso da imprensa/mídia na desinformação ou pelos dois fatores congregados, ainda consegue entender.

Na “manifestação” dos simpatizantes do IPCO era entregue um cartão amarelo aos transeuntes com os seguintes dizeres:

“Senhores políticos:

ATENÇÃO! O Brasil rejeita os absurdos presentes no PNDH-3:

1.      Corrosão do Direito de Propriedade

2.      Aborto

3.      Legalização da Prostituição

4.      “Casamento” Homossexual

5.      Adoção de Crianças por Casais Homossexuais

6.      Implantação de sovietes nos moldes da Rússia comunista

7.      Enfraquecimento da Polícia

8.      Desmoralização do Judiciário

9.      Educação socialista desde a infância

10.  E outras 510 aberrações…”

A outra margem do cartão estava destinada a coleta de informações de simpatizantes da causa, solicitando dados como nome, e-mail, cidade e estado do individuo. E ilustrando a parte superior do panfleto, esse texto: “Faça sua parte para que o PNDH-3 não seja implantado no Brasil. Queremos que o Brasil continue a ser a Terra de Santa Cruz”.

Em aproximadamente cinco minutos, observei cerca de 30 pessoas assinarem o tal manifesto/Abaixo-assinado. Mas o que mais me surpreendeu foi a “coerência” da argumentação que utilizavam: para discutir o aborto, se remetiam a passagem bíblica na qual Herodes determina o assassinato de crianças com menos de dois anos; na questão dos direitos homossexuais, relembrava Sodoma e Gomorra…

Concordo com as análises dos professores (sim, há esperança na profissão!) Eric Hobsbawn e Wanderley Guilherme dos Santos no que concerne a herança do governo Lula: intensificação da democracia e mudança no paradigma da república brasileira, com o combate a miséria e a inclusão da massa ao mercado de bens de consumo no país. Todavia, há que se “martelar” nas ressalvas.

É preciso investir seriamente em educação e na democratização da informação, de maneira que debates sobre temas caros e polêmicos ao país, como aborto, direitos de homossexuais, racismo etc. sejam orientados por uma concepção republicana de estado e não submetidos às crenças e idiossincrasias de determinados grupos religiosos. Nunca é tarde lembrar: o Brasil é uma república laica, não um estado teocrático. Esquecer essa premissa é correr o sério risco de daqui a quatro anos, termos um Berlusconi eleito presidente da república. A campanha eleitoral de 2010 mostrou que há quem se interesse em jogar  com a desinformação como arma política.

Redação

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