Ubatuba: Ato une religiões e resgata história da ‘Igreja dos escravos’

do InforMar Ubatuba

‘PRAÇA DA PAZ’ – Ato une religiões e resgata história da ‘Igreja dos escravos’

Fotos de Renata Takahashi

No século retrasado os negros eram impedidos de frequentar a mesma igreja que os brancos. Os senhores de Ubatuba iam à Matriz. A igreja da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em frente à praia do Cruzeiro, era o lugar onde os negros podiam expressar sua espiritualidade.

 

No último domingo, 8, porém, frei Avelar, um padre negro, e pai Edison Soler, um babalorixá branco, sentaram-se lado a lado e, cada um à sua maneira, falaram palavras de amor e respeito em um ato público que uniu cristãos, adeptos do candomblé e pessoas diversas no local onde ficava a antiga “igreja do negros”, lugar hoje chamado de Praça da Paz. Além do resgate histórico, o ato foi oportunidade de oração e manifestação conjunta contra a violência e a intolerância religiosa.

O evento começou com um cortejo do Maracatu Itaomi e terminou com uma missa na matriz Exaltação à Santa Cruz.

Para frei Avelar, “é muito significativo que isso seja realizado hoje por que nós estamos prestes a comemorar os 300 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora Aparecida”, a imagem da Virgem negra, encontrada no rio Paraíba. Ele lembrou que há diferentes manifestações de devoção a Maria no mundo devido à pluralidade das culturas, mas que todos os títulos e representações seriam da mesma mãe de Jesus. “O que importa é abrir o coração para ela e pro seu filho Jesus”, disse o franciscano.

Pai Edison lembrou da importância da união das religiões em prol da paz: “Somos todos filhos de Deus, somos todos seres humanos, somos todos frágeis”, disse o babalorixá. Ele, que é mestre de maracatu, afirmou que pretende realizar vários “baques” e coroações no local cujo significado o ato se propõe a resgatar.

HISTORIADORES

Os historiadores José Euclides “Zizinho” Vigneron e Leandro Cruz usaram a palavra para explicar o significado daquele lugar.

Vigneron contou que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos existiu em Ubatuba de 1809 até pelo menos 1897, quase dez anos após a abolição da escravidão. A igrejinha ficaria de pé ainda até 1913, quando foi parcialmente destruída por um incêndio supostamente causado por “um fenômeno da natureza que até hoje não está bem esclarecido”. Adornos da igreja que escaparam do incêndio foram usados no altar-mor da Igreja Matriz que estava inacabado.

O historiador e ex-prefeito Zizinho Vigneron falou ainda sobre a imagem da Virgem do Rosário que ficava na igreja dos escravos e que foi exposta ao público durante o ato de domingo pela primeira vez em décadas. A imagem teria sido confeccionada pelo escultor português Manuel José Vieira, na cidade de Braga.

Leandro Cruz, historiador e jornalista, lembrou que para o Brasil foram trazidos pessoas escravizadas em diferentes regiões da África, com línguas, religiões e culturas diversas. Essas pessoas eram arrancadas de suas famílias e levadas para um lugar onde eram impossibilitados de reproduzir seus cultos e sua cultura. “Suas canções não foram mais cantadas, muitas de suas histórias, antes passadas de geração em geração, não foram mais contadas. A criança arrancada da mãe, o roubo da identidade, a teia de significados que explicava o mundo e a ligava a seus antepassados sendo rasgada, isso foi a maior violência. Maior talvez que o chicote e o trabalho forçado”, estimou Leandro Cruz.

“Então esses homens precisam se reconstruir e construir novas identidades, novos lugares de encontro. A Irmandade do Rosário teve esse papel”, disse o historiador que lembrou que além dos serviços religiosos as irmandades eram um lugar de encontro onde acontecia a socialização, as festas, a ajuda mútua.

No interior das irmandades negras que se formaram em todo o Brasil surgiram formas originais de cristianismo, com influência sobretudo da cultura do antigo reino bantu do Congo, um reino africano cristão onde já existia devoção à Virgem do Rosário antes mesmo da descoberta do Brasil. Daí teria surgido a tradição católica das congadas, em que a Virgem do Rosário e santos negros como São Benedito e Santa Ifigênia são homenageados com o toque de tambores.

Negros de outros origens, como os nagôs ou iorubás, também frequentavam as toleradas irmandades católicas de homens pretos uma vez que as outras manifestações de religiosidade negra eram ainda mais reprimidas pelos senhores. Nesse espaço de encontros, elementos de uma cultura acabavam incorporados por outra. Essa seria a razão pela qual no candomblé também são venerados alguns santos católicos, inclusive identificando alguns deles com entidades da antiga religião iorubá.

Essa tolerância, porém, era limitada, lembrou Cruz, citando um trecho de um processo criminal de 1831 em que o padre Emídio foi acusado de colaborar com um suposto plano de rebelião escrava pelo simples fato de permitir que os negro da irmandade fizessem “batuques” em sua casa.

CULTURA E RESISTÊNCIA

Jorge Garcia Basso, doutor em Educação, falou sobre a necessidade de a história dos africanos e afro-brasileiros ser ensinada nas escolas. “Atos como esse são necessários para a valorização da cultura negra”, opinou.

Mario Gabriel do Prado, líder comunitário do Quilombo da Caçandoca falou da luta dos negros e das comunidades tradicionais. “Nós continuamos a ser escravos até hoje. A nossa luta não acabou”, disse lembrando dos desafios que o povo negro ainda enfrenta, como o preconceito de cor e religião, além dos interesses econômicos da especulação imobiliária sobre os territórios das comunidades tradicionais quilombolas.

Rogério Estavenel, coordenador da Pastoral Fé e Cultura da Diocese de Caraguatatuba chamou a atenção para a importância do diálogo interreligioso. “Nós (católicos e candomblecisas) temos muito mais coisas que nos unem do que coisas que nos separam.”

Nalva Barbosa, educadora e fundadora do Instituto da Árvore e integrante do Maracatu Itaomi, chamou a atenção para mazelas cotidianas que permanecem até hoje, como o racismo contra indígenas e a violência contra a mulher. “O candomblé é uma religião de paz”, lembrou.

Finalizando o ato, Frei Valdevan disse que “esse é um momento em que nós devemos unir forças, porque a escravidão não acabou, só mudou de roupagem”.

Após essa última fala, o músico e biólogo Henrique Becker puxou uma música em louvor à Virgem do Rosário acompanhado pelos tambores do maracatu que acompanharam a imagem de volta até a igreja Matriz Exaltação à Santa Cruz:

” Pela Virgem do Rosário
Os tambores vieram tocar
Traz à luz do passado uma história
Que o tempo não pode apagar!”

 

 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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