Ciência & Tecnologia

Pasternak: desconhecimento travestido de ciência, por Luciano Elia

Desconhecimento travestido de ciência

por Luciano Elia

Ainda que estejamos por demais advertidos da força de ideologia neoliberal que faz da ciência contemporânea refém dos interesses do capital e dos grandes laboratórios de fármacos (em particular dos psicofármacos, que se locupletam com a medicalização/psiquiatrização galopante da sociedade em escala mundial, fazendo da indústria farmacêutica a mais poderosa do mundo e das farmácias – que se reproduzem como coelhos em cada quarteirão das grandes e médias cidades – os seus multipontos de venda), não pudemos deixar de nos espantar com a matéria “Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, de Nathália Pasternak e Carlos Orsi.

O espanto é efeito do contraste entre uma voz que, ao longo da pandemia da COVID-19, sustentava diariamente uma posição crítica à anti-ciência e ao governo devastador que tivemos no Brasil, contemporâneo da pandemia e arauto da morte, deliberadamente promovida pela necropolítica vigente, como demonstrou a excelente e corajosa pesquisa realizada por Deise Ventura e Fernando Aith no CEPEDISA¹. O governo fascista que descomandou o Brasil entre 2019 e 2022, além de adversário da vida, da liberdade, da justiça e do bemestar social, é também – e por isso mesmo – inimigo da ciência. Era um bálsamo para qualquer inteligência científica e também para todo espírito democrático e cidadão ouvir, na TV, a crítica clara e firme da microbiologista Nathália Pasternak, tanto quanto de Margareth Dalcomo e Pedro Curi Hallal.

Essa mesma voz, de culto ao rigor científico e à informação de alto interesse da população, levanta-se agora para dizer bobagens (Que bobagem…!, os termos do seu título já são uma espécie de confissão e confirmação do princípio psicanalítico de que o sujeito sempre fala de si quando supõe estar atacando o outro) a respeito do que radicalmente desconhece. Convenhamos que este título já traz um estilo coach desses livros de bancas de aeroporto que dão receita de sucesso, poder e conhecimento fácil da esperteza do “vencer na vida” sem fazer muita força.

É impressionante que alguém se outorgue o direito de proferir ataques a um campo de conhecimento, práxis e experiência diferente do seu, do qual nada sabe. De que lugar e com que legitimidade esta pessoa fala? O que a autoriza a isso, senão a mais desavergonhada leviandade para dizer o que bem entende, sem qualquer consideração de método, rigor e conhecimento de causa, sem qualquer pudor e respeito ao que é heterogêneo e irredutível ao seu quintal epistêmico (que tem na verdade muito mais empiria que episteme)? Respondemos: o que autoriza a isso é o rompimento da pseudociência atual com qualquer compromisso com a questão da verdade. Hoje, a chamada ciência tem as mãos livres para afirmar o que quiser, sem qualquer constrangimento ou submissão à prova do rigor, sem qualquer restrição que limite seu poder. No campo do Direito, como nos ensina o eminente Professor Agostinho Ramalho², a cláusula pétrea é justamente aquela que limita o poder de fazer o que se quiser.

De saída, o mais completo e grosseiro desconhecimento epistemológico, ao patamarizar a psicanálise com a homeopatia e a acupuntura, por exemplo. Não porque desvalorizamos essas práticas, que tem referências importantes culturais diversas da medicina ocidental, hoje refém do capitalismo. Mas por uma razão mais estrutural, fundamental, de natureza epistemológica, desconhecida pelos autores do livro: a psicanálise não é uma especialidade ou ramo da medicina, como os outros alvos do ataque ideológico e não científico da doutora Pasternak. Oriunda da medicina como práxis, a psicanálise fez o que o grande Gaston Bachelard conceituou como um corte epistemológico com a medicina, fundando um novo campo epistêmico, uma nova ciência, a psicanálise. Bachelard (hoje é preciso apresentá-lo à comunidade “científica” que, como os autores de Que bobagem!, certamente não o lê) é o decano da epistemologia crítica do século XX, ciência que tem por função examinar criticamente as práticas científicas, avaliar seu rigor e sua cientificidade – projeto ao qual se lançam, sem qualquer competência para isso, os autores do livro ora lançado, revivendo para isso as mais rasteiras posições metodológicas positivistas. Os epistemólogos críticos – Gaston Bachelard, Karl Popper³, Thomas Khun, Michel Foucault, Louis Althusser, Georges Canguilhem e na América Latina Mario Bunge (Argentina), Carlos Henrique Escobar e Hilton Japiassu (Brasil), entre outros – demonstraram de modo contundente a pseudocientificidade dos métodos positivistas, empírico-indutivos, que estão na base da falsa ciência atual. Eles não deixaram herdeiros na geração atual porque a “ciência” contemporânea, em golpe ideológico apoiado pelo capital, que Lacan denominou de “cópula da ciência com o capitalismo”4, eliminou a epistemologia que poderia julgá-la, tratando cuidadosamente de exterminá-la do universo acadêmico, científico e editorial, no final do século – não por acaso no momento histórico em que o capitalismo iniciou sua escalada de degradação no
neoliberalismo.

Quem poderia supor, assim, que a voz que nos trazia o oxigênio do pensamento científico em um momento de confinamento, sofrimento social agudo, desastre político sem precedentes, tornando iminente a destruição do Brasil (tão somente evitada pela não reeleição do presidente fascista), seria agora capaz de proferir a série de estultícias não apenas sobre a psicanálise, mas também sobre a própria ciência e a cientificidade. Como se ciência fosse um campo restritiva e exclusivamente reduzido às ciências naturais e às pesquisas sobre o funcionamento dos elementos do mundo natural – e, o que é pior, em uma perspectiva metodológica anti-galileana. Galileu Galilei, o grande fundador da física da própria ciência como ciência e como moderna, abominaria o reducionismo positivista da doutora Pastenak. Ele atribuía uma lógica à natureza, e sabia que cabia à ciência “ler o grande livro da natureza, escrito em linguagem matemática”5. Deixou assim aberto o campo de um verdadeiro pensar científico, arejado, amplo e diverso, capaz de comportar em seu seio uma grande variedade de objetos, de recortes, de métodos que lhes sejam congruentes. Galileu, que se rebelou, em nome da razão e da liberdade de pensar, contra a imposição autoritária da Inquisição e pagou caro por isso, jamais daria seu aval a esses ataques levianos, metodologicamente flébeis, ideologicamente formulados e politicamente orientados por interesses não científicos (aspecto que, se não é eliminável da impureza estrutural das práxis humanas, deve ser por isso mesmo cuidadosa e criticamente diagnosticado, localizado, identificado para reduzir os danos que as intenções interesseiras causam no saber a na ciência). Ele criou o campo científico moderno, amplo e racional, sem terraplanismos, geocentrismos e egocentrismos, capaz de levar inteligibilidade nos mais insuspeitados campos da experiência humana, justamente como fez Freud ao desbravar o inconsciente com as luzes da ciência rigorosa em que foi formado. Mas isso sempre desagrada a alguns – já não agradou à Igreja medieval, hoje desagrada ao Exército e ao Deus-mercado. O que não é motivo para esmorecermos em nossa defesa da ciência e da razão, e de relançar a pergunta:
Que ciência comporta a psicanálise? 6

Rio de Janeiro, 20 de julho de 2023

Luciano Elia, psicanalista, membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise, Professor titular da área de Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutor (1992) e pós-doutor (1995) em Psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

NOTAS

1 CEPEDISA – Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário – Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo, USP.

2 Marques Neto, A. R. – Limites à atuação do juiz, in Emporio Direito, ver link:
https://emporiododireito.com.br/leitura/limites-a-atuacao-do-juiz-por-agostinho-ramalho-marques-neto.
3 Ainda que tenha formulado críticas à psicanálise, Popper jamais deixou de usar argumentos lógicos e não cedeu à tentação do ataque vulgar. Podem-se demonstrar os equívocos de sua crítica, mas não acusá-lo de deselegância, traço exigível no bom debate científico.
4 Cf. Lacan, J. O Seminário, Livro XVII, O avesso da psicanálise, 1969-70, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1992.
5 Galilei, G. – Il saggiatore (O ensaiador), 1623. São Paulo, Edições Nova Cultural, Os Pensadores, 2000.
6 Lacan, J. – Resumo para o Anuário de 1965 da EPHE (École Pratique des Hautes Études), in Le Séminaire, Livre XI – Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, 1964, Paris, Éditions du Seuil, 1973, verso
da última folha, sem número.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepauta@jornalggn.com.br. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

Redação

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  • Reféns da indústria farmacêutica? Neoliberalismo que visa só o lucro financeiro e instrumentaliza a ciência? Pode ser verdade, mas não basta a afirmação para ser verdade. Isso porque podemos utilizar os mesmos argumentos com a homeopatia, a acupuntura e a psicanálise. Ou será que algum desses "campos" é basicamente gratuito? A homeopatia não tem também os seus laboratórios? Não existem psicanalistas que almejam um ganho financeiro tanto quanto alguns psiquiatras? Ou acupunturistas? Ou homeopatas? Poderíamos, por favor, jogar esses argumentos fora e começar de novo? Agora sim, com uma discussão filosófica-epistemlógica?

  • [Parte 1 - Obrigado, Cloudfare!]

    Resumo da ópera: eu amo a ciência, mas não mexam com minha crendice de estimação - senão viro a chave e desfio todo um rosário de falácias lógicas contra quem defende o rigor do método científico doa a quem doer... Não venham questionar minhas certezas não, não me deixem cair no limbo da dúvida, buáááá buáááá! Se algo é ciência ou não é uma questão de O-PI-NI-ÃO, taoquei?

    [CONTINUA]

    • O título do livro é provocativo. Ela poderia chamar de "crítica à psicanálise". Mas preferiu chamar apenas de "bobagem" e coloca no mesmo balaio que "astrologia". Ela esperaria o quê depois disso? Se ela debocha, espera abraços em troca? Nada contra o debate. Acho válido que se questione. Apenas contra a forma como foi levantado. Desrespeitoso com profissionais que dedicaram uma vida a um trabalho que consideraram honesto, e estão sendo tratados como charlatões.

  • [Parte 2 - Obrigado, Cloudfare!]

    Registre-se que é muito semelhante o modo como variados grupos de interesse pretendem ressignificar e alargar o conceito de "ciência", sem respeitar seu processo ITERATIVO e ABERTO "observação>modelagem>observação>modelagem..." (a posteriori); adotam, ao contrário, o método subjetivista/religioso NÃO-ITERATIVO (salvo quando ridicularizado, como o ajuste de rota criacionismo > design inteligente) e HERMÉTICO "teoria baseada em objetivos/conta de chegada>caça de exemplos supostamente comprobatórios" (a priori) e partem para a guerra de conceitos, de palavras, de metáforas impróprias, de inversão de ônus da prova, de vitimização, de desvio de foco, de falsas equivalências, de ataques ad hominem, de desqualificação de lugar de fala, etc..

    [CONTINUA]

  • [Parte 3 - Obrigado, Cloudfare!]

    Deveriam inventar um nome próprio para o que praticam; "religiência", "negaciência", "crendência", há várias opções, só não vale chamar de ciência o que não respeita seu método, sua forma de construir conhecimento. E se é para fazer metáforas, invocar Galileu para defender pseudociências é tão ridículo quanto ver Deltan Dallagnol alegando perseguição do Judiciário.

    [CONTINUA]

  • [Parte 4 - Obrigado, Cloudfare!]

    Sugiro, a propósito, os artigos do IQC e sua revista sobre método científico, bem como as notícias sobre audiências públicas em que têm participado e desmascarado argumentos do gênero (quase sempre desaguando nas mesmas condutas: pseudocientistas perdendo a linha e partindo para a apelação e mesmo agressão verbal, não raro se arvorando também em "supercientíficos" argumentos de autoridade: "Vocês não entendem nada da minha (pseudo)ciência!! Sou pós-doutor nela!!").

    [CONTINUA]

  • [Parte 4 - Obrigado, Cloudfare!]

    Sugiro, a propósito, os artigos do IQC e sua revista sobre método científico, bem como as notícias sobre audiências públicas em que têm participado e desmascarado argumentos do gênero (quase sempre desaguando nas mesmas condutas: pseudocientistas perdendo a linha e partindo para a apelação e mesmo agressão verbal, não raro se arvorando também em "supercientíficos" argumentos de autoridade: "Vocês não entendem nada da minha (pseudo)ciência!! Sou pós-doutor nela!!").

    [CONTINUA]

  • [Parte 5 - Obrigado, Cloudfare!]

    Destaque-se, ainda, que a bandeira maior do IQC é que políticas públicas sejam sempre baseadas em evidências científicas, e não uma suposta proibição de teorias e técnicas "alternativas" - mas que estas fiquem restritas à esfera privada, sujeitas ao mais amplo debate e contraditório, mas sem acesso a recursos públicos enquanto não produzidas provas com o devido rigor científico. "Provas" a la Lava-Jato (ou a la Didier Raoul) não valem. Até lá, tirem, pois, as mãos do Erário.

    [CONTINUA]

  • [Parte 6 - Obrigado, Cloudfare!]

    Logo, não há nenhuma contradição em defender vacinas e combater a adoção de cloroquina como tratamento para a COVID (ou ivermectina, ou ozonioterapia, etc.), em relação ao combate à prescrição de homeopatia, quiropraxia, psicanálise, água benta, acupuntura, etc. pelo SUS ou à adoção de polígrafo, constelação familiar, "provas" mediúnicas, etc. pelo Judiciário. Tampouco com um combate a "provas" apresentadas sem respeito ao devido processo legal - ou científico.

    [CONTINUA]

  • [Parte 7 - Obrigado, Cloudfare!]

    Quem vê diferença entre essas coisas precisa se despir de suas ideias pré-concebidas, absorvidas sem rigor, de seu senso comum, e olhar as coisas novamente como uma criança curiosa, sempre a questionar as respostas prontas dos adultos e que não têm obrigação de aceitar nada; o ônus da prova é de quem alega. Ou estudar epistemologia a sério, não apenas para enumerar nomes, mas para buscar entender enfim que ciência é, acima de tudo, método, não um simples discurso, moldável a bel prazer pela retórica. De cientista, o articulista se sai como um excelente advogado.

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