O Retorno dos Bacharéis, por Carlos Medeiros

Por Carlos Medeiros
*Professor Titular do Instituto de Economia da UFRJ

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Sugerido por Ronaldo Bicalho

Na República Velha, o bloco dominante era formado pelos proprietários de terra, com os bacharéis como seus intelectuais orgânicos (Antonio Gramsci em sua análise do Mezzogiorno referia-se a estes como intelectuais orgânicos do bloco agrário), tanto por legitimarem esta dominação quanto por resolverem os litígios comerciais e defenderem seus direitos de propriedade (obtidos em grande parte por fraudes).

Posteriormente à Revolução de 30, os industriais e os construtores assumem maior protagonismo no bloco do poder (sem romper com o bloco agrário) e os seus intelectuais orgânicos, defensores do nacionalismo econômico, eram sobretudo engenheiros (na acepção de trabalhadores qualificados envolvidos com a produção e gestão de bens e serviços), responsáveis pelo planejamento econômico e pelo estado empreendedor através de empresas públicas, cabendo uma nova função aos advogados, o direito do trabalho.

 

Com o golpe de 1964, os militares entraram no poder, deslocando os trabalhadores e seus sindicatos bem como as liberdades civis, e afirmaram-se novos intelectuais orgânicos deste bloco tendo por eixo a luta contra o comunismo, mas foram reforçados o nacionalismo, os engenheiros e o planejamento.

A partir da crise da dívida dos anos 1980, o núcleo do poder se desloca para os detentores de ativos dolarizados (firmas multinacionais, grandes bancos e exportadores) e os economistas, (os novos technopols) tornaram-se os seus intelectuais orgânicos, responsáveis tanto pela ideologia da abertura externa e da privatização, quanto pela negociação da dívida externa – sempre em nome da eficiência e da modernização, mas seguindo a direção do Consenso de Washington.

Nos anos 2000, pelo menos na sua primeira década, embora o planejamento e o papel central dos engenheiros ou dos militares não tenham retornado, os financistas e seus economistas perderam, juntamente com as instituições de Washington, algum espaço em função do acúmulo de divisas ocorrido no período, de um maior protagonismo e maior renda de grupos subalternos e da retomada de um nacionalismo de recursos naturais liderado pela Petrobrás. Estes longe de se limitarem ao Brasil afirmaram-se em geral na América do Sul.

Atualmente, e em meio a uma crise política sem precedentes que resultou numa fratura do aparelho hegemônico de Estado, o bloco formado por grandes proprietários de terra (incluindo os especuladores urbanos), pelos financistas, por escritórios de consultorias às empresas, firmas multinacionais e prestadores de serviços nas áreas socialmente centrais da educação e da saúde ganhou ainda maior proeminência, enquanto os demais setores produtivos e, em particular, as empresas públicas atrofiaram-se em dívidas e entraram em profunda crise a despeito de não ter havido qualquer crise externa comparável à das duas décadas anteriores.

Os economistas financistas e consultores da riqueza privada permaneceram na sua função de legitimação ideológica, mas os bacharéis afirmaram-se fortemente na dupla função de “salvadores da pátria”, com a narrativa da “decomposição política e moral” (substituindo aqui os militares no papel que estes desempenharam em 1964), e de “tropa de elite” na ofensiva contra as organizações remanescentes do estado empreendedor e dos seus dirigentes cronicamente identificados como “buscadores de rendas”.

Mas há uma diferença profunda com a função exercida pelos bacharéis na República Velha. Estes, além da função ideológica (então desempenhada em conjunto com a Igreja católica), eram passivos e funcionais aos interesses da classe dominante. Atualmente embora o Judiciário tenha sido funcional para legitimar o golpe de 2016 e criminalizar Lula – um presidente que por mais concessões que tenha feito ao bloco dominante jamais foi aceito por este como representante de seus interesses – perdeu qualquer funcionalidade. A atuação dos “tenentes togados” tem gerado forte instabilidade institucional, na medida em que seus membros passaram a disputar espaço político e midiático cada vez maior.

No entanto, é possível que aos poucos afirme-se uma função mais propositiva e funcional dos novos bacharéis (em conjunto com os economistas liberais). Isto poderá acontecer no bojo de um projeto, cujos contornos começam a aparecer, de constitucionalização do direito privado, esvaziando de sentido a figura do cidadão em prol das figuras do consumidor e do cliente, subordinando o poder político aos contratos comerciais. Um projeto que tem sido promovido urbi-et-orbi pelo establishment jurídico e institucional dos EUA, na medida em que corresponde essencialmente aos interesses de suas grandes empresas na garantia de acesso aos mercados e aos contratos sem discriminações derivadas de preferências governamentais.

Tudo em nome da democracia, da transparência e do estado de direito.

 

 

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

View Comments

  • Revolução????

    Esse texto me fez lembrar de Decio Saes e o seu trabalho "Formação do estado Burgues no Brasil" em que discute o papel do classe media, bachareis, na instituição desse estado. Para ele os bachareis foram os operadores da oligarquia agroexportadora.

    No periodo da Republica Velha, havia no seu seio movimentos de trabalhadores e de miliares de baixa patente que buscaram e provocaram um ruptura do modelo estabelcido pela "lei" perfeita do bachareis. No tempo atual, me parece que esses mesmo bachareis estam permitndo um organização de resistencia e em breve isso estourará. Estamos caminhando para um processo revolucionário, curiosamente, não mais dentro da ordem. Isso é inedito na história brasileira.

    Nassif prever o aparecimento de um Napoleão.. .  

    • Revolução????

      A República Velha foi o maior período democrático que este país já teve, que havia produzido a queda de forma de governo medieval e implantado a vanguarda do liberalismo e republicanismo democrático. Não à toa é deste Governo Republicano o voto livre, facultativo, Santos Dumont, Carlos Chagas, Emilio Ribas, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, os Modernistas...O Mundo lotava navios na esperança de tornar-se Brasileiro: Alemães, Japoneses, Suiços, Ucranianos, Poloneses, Italianos, Espanhóis, Norte-Americanos...Fugiam de seus países destruídos e miseráveis para viverem no país que mais crescia no planeta. Tudo destruido por Elites Esquerdopatas, que constituiram tal Governo dando apoio a um Ditador, Um Caudilho, orindo de Quartéis Militares. Não importou nem para tais Elites, que o sanguinário assassinasse Estudantes Paulistas desarmados, lutando por Democracia e Constituição. O eixo de Poder, então sai de Estados desenvolvidos e suas populações para se perpetuarem por quase um século entre o Coronelato Nordestino. Não à toa, os nomes de influência destes anos de Redemocracia, que vieram de outra Ditadura Militar sejam Collor, ACM, Jader Barbalho, Agripino Maia, Coelhos, Bezerras, Sarneys, Aleluia, Guimarães, Jereissati, Lobão,...Generais na farsa de Governos peseudo-progressistas 

      • República Velha

        Certamente podemos chamar de Republicanismo Democrático o acordo de oligarquias regionais  vigente, chamado de Política Café com leite...

        Na República Velha, como agora , Questão social era questão de Polícia !

        A oligarquia cafeicultora paulista, viciada em exportação de grãos e mão de obra barata jamais perdoou Vargas pelo rompimento do acordo  de oligarcas e pela industrialização com viés nacionalista !

        Os órfãos de Washington Luís/ Julio Prestes seriam os atuais bolsominions ?

         

        • República....

          Como eu escrevi, Um Ditador sanguinário, um Caudilho que assassinou Estudantes desarmados manifestando-se à favor da Democracia e cumprimento das Leis através de uma Constituição. E que deu um golpe para sobrepor a vontade das Urnas. Não teria tanto exito sem o apoio de oiutras lideranças ditatorias como Carlos Prestes, que não se importou nem com o Ditador ter mandado sua esposa para Campos de Extermínio Nazista. Mosta bem o que as Elites não fazem por um feudo no Poder Público. 

  • Numa de suas crônicas mais

    Numa de suas crônicas mais inspiradas, há um século Lima Barreto criticou a nobiliarquia diplomada (substituta tupiniquim pseudo-republicana da nobiliarquia hereditária que existia no Império). Ela continua viva e ativa, especialmente no Judiciário onde desfruta auxílio moradia, auxílio terno, vale livro e outros penduricalhos indecentes acrescentados aos salários nababescos acima do teto. Acima da Lei, os barões diplomados a colocam fora do alcance de Lula e dos eleitores dele. Será preciso arrear o sarrafo no lombo destes vagabundos comprometidos em manter o Brasil acorrentado ao antigo regime e a dependência dos EUA.

  • Regressistas de berço, pegam uma pontinha
    Regressistas de berço, pegam uma pontinha da riqueza gerada pela mmais valia, leia-se exploraçao da força de trabalho da Senzala....por isso pensam e agem como se senhores de escravo fossem, retrato fiel dos Moros, Moros, Ricardos Leites e outros espalhados por STJ, STF, covardões se coçando de tanta vontade de levar Lula para o tronco preparado pelo Império que exigiu a destruição deste pais.

    segue link para texto atualissimo de Mauro Santayana, 2006

    A Måfia dos Bacharėis, outro nome da UDN

    https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Os-outros-nomes-da-UDN/21590

  • E não é de hoje ...
    " Quando Deus formou o mundo,Pra castigo de infiéis:Deu ao Egito gafanhotos,Ao Brasil deu bacharéis." Tobias Barreto - 1859

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