Crônica

Para Jesse e Céline, por Felipe Bueno

do Observatório de Geopolítica

Para Jesse e Céline

por Felipe Bueno

Antes do Amanhecer (1995) é um dos filmes que marcaram a minha geração. Sentíamos que estávamos ficando adultos ao mesmo tempo que o mundo: o muro de Berlim e a Cortina de Ferro desabavam, a Europa aparentemente superava suas diferenças e se unificava, Margaret Thatcher se retirava de cena, Eric Hobsbawm escrevia A Era dos Extremos. Um momento de reflexão e mudanças, medo e esperança.

O céu não estava totalmente azul. Éramos testemunhas da guerra do Golfo e da destruição da Iugoslávia e de suas minorias; não fomos capazes de cicatrizar as muitas feridas ainda abertas na América Latina, na África e no Oriente Médio.

A indústria cultural trazia beleza, angústia, entendimentos e novas perguntas. Na literatura, consumíamos linhas e entrelinhas dos livros de Milan Kundera. No cinema, em especial, a Trilogia das Cores, Salada Russa em Paris e outros nos ajudavam a captar e absorver o que acontecia naquele continente considerado por muitos o berço da civilização ocidental.

E coube a um cineasta nascido nos Estados Unidos, Richard Linklater, a ideia de colocar dois jovens desconhecidos no mesmo vagão de um trem europeu. De Antes do Amanhecer, desde sempre tive uma interpretação que eu mesmo achava extravagante, e por isso mesmo a dividi com pouquíssimas pessoas. Mas sustento até hoje: é um filme romântico, sim, mas não entre duas pessoas. Trata-se de uma declaração de amor à Europa.

Tal interpretação estava guardada numa gaveta fazia anos, até o momento em que vi a capa deste junho da revista espanhola Jot Down, que, aliás, reputo como uma das melhores publicações culturais do planeta. O tema: a Europa. A capa: Julie Delpy e Ethan Hawke.

Nunca me pareceu à toa que a primeira sequência do filme fosse justamente o movimento de um trem sobre trilhos, ao som da abertura de Dido e Aeneas, de Henry Purcell. Muito menos o fato de que a noite inesquecível de Céline e Jesse fosse vivida em Viena, a Viena dos cafés e dos teatros, mas também a Viena dos gabinetes e palácios, ponto central do Sacro Império Romano Germânico e do Império Austro-Húngaro, cenário de uma Europa que sabe o que foi e ainda tenta descobrir o que será, com bastante atraso.

O filme, que acabou se tornando o primeiro de uma trilogia, termina com muitas perguntas, mas toda uma vida adiante para se viver, representada pelo casal protagonista. Passados quase trinta anos, nós, que vimos Antes do Amanhecer em “tempo real” e fizemos do enredo nosso sonho de vida, passamos por distintas experiências pessoais, sucessos e fracassos. Mas todos podemos nos perguntar, sem exceção, por que aquele amanhecer em Viena, tão cheio de luz e esperança, parece bem mais distante em 2023.

Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.

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Observatorio de Geopolitica

O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

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