A Busca Interior Através dos Números no Filme “Pi”

 

 

O filme “Pi” confronta dois paradigmas místico-filosófico (cabala versus alquimia) ao mostrar a irônica jornada de um gênio matemático que, ao tentar encontrar números inscritos na natureza, encontra a si mesmo em um espelho fragmentado de paranoia e delírio.


Na postagem anterior discutíamos o “thriller matemático” argentino “Moebius”. Não poderia deixar de lembrar do ousado e experimental filme de Darren Aronofsky “Pi” (Pi, 1998). Filmado em película 16 mm e em preto e branco, temos uma narrativa cujo argumento inicia-se no princípio matemático PI.

O número PI é a mais antiga constante da matemática: é o valor da razão entre a circunferência de qualquer círculo e seu diâmetro.

O PI está em todos os lugares: no movimento das ondas numa praia, no trajeto aparente diário das estrelas no céu, no movimento das engrenagens e rolamentos, na propagação dos campos eletromagnéticos e em um sem número de fenômenos e objetos do mundo natural e da Matemática. Todos estão associados às idéias de simetria circular e esférica. De um modo quase que inexorável o estudo dos círculos e esferas acaba produzindo o PI. Daí a ubiquidade desse número.

Em consequência temos os seguintes postulados do protagonista, o matemático Max Cohen, que ele logo apresenta no início do filme:

“Primeiro: a matemática é a linguagem da natureza

Segundo: Tudo ao nosso redor pode ser representado através de números

Terceiro: se representarmos graficamente os números de qualquer sistema, os modelos surgem”

 

Portanto, há modelos por todas as partes na natureza, na sociedade e no comportamento humano: do mercado de ações, bolsa de valores ao livro sagrado da Torá dos judeus, tudo pode ser representado por modelos matemáticos.

 


A trama segue Max Cohen, um gênio matemático recluso em seu pequeno, sujo e caótico apartamento onde obsessivamente procura na tela de seu computador uma sequência numérica em torno de 200 números que seria o modelo universal para todos os fenômenos.


Sua obsessão é acompanhada por terríveis dores de cabeça que surgiram na infância que o faz utilizar de forma incontrolada um coquetel de analgésicos e outros medicamentos. Paradoxalmente, quanto mais ele tenta encontrar modelos ordenados para a existência, mais a sua própria vida torna-se caótica: as crises cada vez mais lancinantes de dores de cabeça o fazem entrar em progressivos estados de delírio e paranoia.  A fotografia em preto e branco, estourada e com poucos meios tons torna ainda mais difícil para o espectador diferenciar onde termina a realidade e onde começam os delírios do protagonista.


A atmosfera paranoica da narrativa se torna ainda mais densa quando Cohen passa a ser perseguido por agentes de uma empresa de corretagem de títulos de Wall Street e um judeu ortodoxo estudante de Cabala que faz parte de um grupo que procura o código numérico da Torá (livro que contém segredos das antigas escrituras religiosas judaicas) que seria o próprio nome sagrado de Deus.


Diferente de Cohen que procura o modelo numérico por interesses filosóficos ou diletantes, o grupo de rabinos e o outro de Wall Street  querem apenas uma coisa: poder, seja financeiro ou religioso.


A discussão matemática do número Pi é um mero pretexto para Darren Aronofsky  abordar temas de outra ordem, filosóficos e místicos: determinismo versus caos, cabala versus alquimia. Em filmes posteriores como “Fonte da Vida” (The Fountain, 2006 – já analisado por esse blog – veja links abaixo), Darren aprofundará ainda mais esse temas que se iniciam em “Pi”.


O protagonista Max Cohen possui uma obsessão gnóstica por transcendência. Quer encontrar no aparente caos e desordem do cosmos físico um ordenamento divino que purifique a existência. Mas, para seu desespero, quanto mais mergulha no sistemático mundo dos modelos numéricos, mais encontra a desordem e o aleatório.

 

Por trás dessa oposição determinismo versus caos (representado na narrativa pelo confronto com o vizinho de Cohen, também matemático, que abandonou a obsessão pela busca da sistematização numérica da existência ao reconhecer o caos da natureza) está um confronto mais profundo sugerido por Darren: a luta entre duas concepções místicas sobre a existência, o cabalístico e o alquímico.

 

 

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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