Capítulo terceiro
Cálidos e tépidos
há pouco, após um breve, porém intenso toró, fui à padaria comprar víveres para a merenda noturna – aprendi com Vó Filhinha, que viveu 99 anos: “Após as refeições, ocê sempre saia da mesa ligeiramente com fome, especialmente à noite, quando a digestão também tá com sono”, daí que não janto, apenas merendo.
chamei o elevador, chegou, entrei, um andar depois, minhas narinas sentiram-se como que afundadas num jardim repleto de damas-da-noite, e descobri a razão quando o elevador parou no andar abaixo, a porta se abriu e uma cavalheira adentrou-o, saudando-me:
– boa noite, jovem.
– boa noite, ca… – inebriado por outro e cálido olor, o de seu hálito Trident canela, quase a ela me referi como “cavalheira”, mas corrigi: – senhora.
e ela pôs-se a olhar no espelho, fazendo uns e outros ajustes no decote sóbrio de seu vestido azul-turquesa e ajeitando as doiradas melenas presas ao coque que lhe desnudava a nuca, esta com um hematoma carmim que, se não fora obra de sedenta e gigante muriçoca, derivou d’alguma boca humana salivando outros afãs.
enquanto isso, por meu turno, em silenciosos, mas aflitos conciliábulos comigo mesmo, me perguntava: “será Antônia, a musa do criativo enamorado que, dias atrás, se valera dos alto-falantes do caminhão de delícias do bom mascate Alvair para convidá-la a um forró?!”
qual lê-se minha mente, ela, ainda olhando-se no espelho, aos lá-ra-ri-la-lás, solfejava “Numa Sala de Reboco”, do Gonzagão.
epifanias minhas, e, vos juro, foi um custo não ceder aos seguintes impulsos: 1) bradar “Dona Antônia, sua tão alto-falada!”; 2) fazer um meneio de braço qual tirasse um chapéu com penacho, daqueles de mosqueteiro de antigas fitas de cinema, colocar o outro braço para trás, flexionar um joelho e sapecar-lhe um fidalgo ósculo na mão de unhas também ornadas em azuis-turquesa; 3) por fim, e principal, em respeitoso ataque de ternura, segredar-lhe: “Estou shipando vocês”.
mas me contive, e graças, afinal, podia haver uma coincidência, ela se chamar, sei lá, Eudóxia e, em verdade, estar indo a um queijos e vinhos promovido por um damo que gosto de imaginar chamar-se Ariosto, colecionador não só de LPs do Luiz Gonzaga, mas também, por insondáveis razões, das cuecas do Agnaldo Timóteo.
quando chegamos à portaria, porém, não mais restaram dúvidas de ela ser Antônia, porque o seu celular tocou, ela o atendeu, e disse:
– desculpe, estou um pouquinho atrasada, mas já saindo do edifício. chego mais loguinho. ah, não tô podendo beber gelado, então, pra ficar no jeito de beber, já pede a minha guaraná.
precisa explicar?
sei lá o seu, mas o meu coração ficou cálido, tépido – feito a goma de mascar sabor canela e “a minha guaraná” de Antônia.
já na padaria, pequeno vexame meu ao balcão, pois esqueci o que, mesmo, fora comprar, cabeça tomada pela única dúvida restante: afinal, qual será a graça do damo, meu Deus?
insônias me aguardam.
Amanhã, capítulo último.
Z Carota é jornalista e escritor, autor de “dropz” (Editora Penalux) e “a beleza que existe” (Páginas Editora)
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