Documentário da BBC “The Century of the Self” (2002) descreve a irônica jornada de como a revolução de psicoterapeutas e filósofos nos anos 60 e 70 contra as idéias de Freud sobre o inconsciente (acusadas de terem se tornado instrumentos do mundo do Markenting, Publicidade e Propaganda Política para fins de manipulação) resultou no oposto: o surgimento do sujeito “fractal”, isto é, um Eu vulnerável, isolado e, acima de tudo, ganancioso.
O documentário da BBC “O Século do Ego” (The Century of the Self, 2002) trás preciosas informações históricas sobre as origens desse verdadeira tendência de endocolonização dos indivíduos pela Ciência, Publicidade e Marketing: a confluência das neurociências, ciências cognitivas, cibernética e Inteligência Artificial, procura fazer um mapeamento do funcionamento do cérebro para desvendar o enigma da mente e da consciência. Em termos práticos, criar modelos simulados do cérebro para sua virtualização, monitoramento e controle para fins mercadológicos e políticos.
A série é dividida em quatro episódios: episódio 1: “Máquinas da Felicidade”; episódio 2: “Engenharia do Consenso”; episódio 3: “Há um Policial Dentro da Sua Cabeça e Devemos Destruí-lo”; episódio 4: “Oito Pessoas Bebericando Vinho em Kettering”.
A série (240 minutos no total) inicia descrevendo como as ideias de Freud foram traduzidas nos EUA através de sua filha, Anna Freud, e pelo seu sobrinho, Edward Bernays (o inventor da profissão de Relações Públicas) como técnicas para controle das massas na era da democracia: a teoria do inconsciente trazida para o cerne do mundo da propaganda e do marketing. É a era da produção em massa e do conformismo em uma sociedade de consumo cujo leque de opções para o mercado era limitado.
O terceiro episódio é o mais importante por abordar o ponto de viragem decisivo dentro da engenharia do controle social nos anos 60 e 70: o momento em que as ideias de Freud são acusadas de serem as responsáveis por governos e corporações manipularem os sentimentos das pessoas e transformá-las em consumidores ideais. Filósofos como Wilhelm Reich e Hebert Marcuse e ativistas estudantis começaram questionar o pressuposto da teoria do inconsciente de que havia um Eu irracional, oculto, que deveria ser controlado pelos indivíduos para o bem da sociedade. Os oponentes diziam que Freud estava errado sobre a natureza humana: o eu interior não precisaria ser reprimido e controlado, mas, ao contrário, deveria ser encorajado a se expressar. Em consequência, teríamos uma sociedade melhor fundamentada num novo ser humano.
O documentário demonstra que o resultado dessa revolução foi o oposto: um indivíduo vulnerável, isolado e acima de tudo ganancioso, mais aberto à manipulação pelo mundo dos negócios e governos.
Topografia da Mente: retirando as camadas
O que chama a atenção no terceiro episódio do “Século do Ego”, são os depoimentos dos primeiros psicoterapeutas norte-americanos dos anos 60 e 70 que inventaram técnicas para permitir aos indivíduos se libertarem dos controles da sociedade. Eles relatam o conceito de retirada de camadas de formações mentais. Como fala o psicoterapeuta Werner Erhard, fundador do Curso de Treinamento Erhard nos anos 70: “ Se você retirar todas as camadas você acaba descobrindo um núcleo, uma coisa naturalmente autoexpressiva . Isso seria o verdadeiro Eu”.
Mais tarde essa mesma técnica é aplicada nas pesquisas de marketing da Universidade de Stanford nos anos 80 sobre Valores e Estilos de Vida (VALS) com métodos de perguntas sucessivas onde camadas de defesas, pensamento e crenças são retiradas para se chegar o núcleo do verdadeiro desejo do consumidor a ser agregado ao produto.
Freud pretendia entender a dinâmica psíquica através da interpretação dos sonhos. E essa interpretação somente poderia ser simbólica (condensações e deslocamentos da linguagem onírica) como forma de entender o porquê das dinâmicas do psiquismo. Em outras palavras, entender a essência última que permitiria explicar a conexão entre a alma e o corpo.
Ao contrário, a preocupação cartográfica e topográfica já presente nas primeiras abordagens dos psicoterapeutas demonstra uma abordagem não mais metafísica como em Freud, mas agora funcional para fins de manipulação direta: nada de descobrir simbolismos ocultos, mas, agora, mapear funções e camadas.
O documentário vai fundo nessa irônica jornada de busca de autoconhecimento: quanto mais os psicoterapeutas empreendiam técnicas de mapeamento profundo da vida mental, mais as camadas de defesa do ego eram retiradas, tornando-o vulnerável as instâncias de controle sociais e políticas. Chamaram isso de “autoexpressividade”.
A Emergência do Sujeito Fractal
Outro ponto importante desse episódio é a narração dos primórdios do desenvolvimento das técnicas de VALS (Valores e Estilo de Vida) pela Universidade de Stanford, Califórnia, no início dos anos 80. As corporações procuravam entender esse novo consumidor não mais conformista, mas que buscava a “autoexpressividade” e a liberdade de transformar-se em novas personas. Pela primeira vez, os pesquisadores começaram a formular questões que não mais envolviam prospecção de dados sobre nível de renda, faixa etária ou nível de escolaridade, mas perguntas profundas sobre como as pessoas se sentem, hábitos e escolhas.
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As redes sociais potencializam o impulso |
O retorno dos questionários pelo correio foi surpreendente (86%). As pessoas simplesmente adoraram preencher os questionários e muitos foram devolvidos com bilhetes do tipo “vocês têm outros questionários que eu possa preencher?”
Dessa maneira, o documentário apresenta o momento em que surge esse verdadeiro impulso confessional que mobiliza as pessoas na atualidade.
A cultura crescente do autoconhecimento e autoexpressividade dos anos 70 resultou num impulso narcísico em expressar publicamente seus desejos mais íntimos, pensamentos, incertezas e motivações. Um impulso confessional potencializado na atualidade pelo ciberespaço por meio de redes sociais como Orkut, Facebook e Twitter.
Autores como Richard Sennet chamam esse fenômeno de “ascetismo mundano” derivado da ética protestante tal qual descrita por Weber. Enquanto na ética cristã o ascetismo de um monge é um impulso voltado para o interior (“um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” – SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 406.), ao contrário, na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus mas aos outros a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um merecedor das graças divinas. Isso se insere na cultura narcísica atual como um impulso confessional como uma performance do eu interior diante dos outros:
“Ou seja, o narcisismo é o princípio psicológico para a forma de comunicação que chamamos de representação da emoção para outrem, ao invés de uma apresentação corporificada da emoção. O narcisismo cria a ilusão de que uma vez que se tenha sentimento ele precisa ser manifestado – poque no final das contas, o ‘interior’ é uma realidade absoluta” (SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 408.)
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A ilusão do eu
Acabei de assistir. Realmente essa necessidade de auto-realização (ou necessidade de admiração) é bem evidente e fácil de manipular, como no caso do doc em que os questionários sobre a vida pessoal e desejos que tiveram mais de 80% de retorno.
Me parece cada vez mais que essa ideia de eu, e de individualidade é algo vindo de fora, algo em que estamos imersos desde que nascemos e podemos nos afogar.