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Uma ficção científica comunista: “Aelita – Rainha de Marte”

“Sigam nosso exemplo camaradas! Unam-se numa família de trabalhadores, numa União Marciana de Repúblicas Socialistas Soviéticas”, brada o herói em um levante de operários nos subterrâneos de Marte contra uma espécie de totalitarismo czarista de outro mundo. Considerado o primeiro filme de ficção científica soviético, “Aelita – Rainha de Marte” (1924) é na verdade um anti-sci fi. Os revolucionários bolcheviques já se consideravam o futuro e a vanguarda, não precisavam de filmes sobre futuros utópicos. Como pretende demonstrar no filme, a utopia sobre viagens espaciais somente poderia ser uma excrescência do individualismo burguês. Mas ironicamente “Aelita” acabou influenciando clássicos do expressionismo alemão como “Metrópolis” e séries das futuras matinês dos cinemas norte-americanos como “Buck Rogers”. Também “Aelita” vai inaugurar o imaginário sobre Marte e a paranoia das invasões no seculo XX.

O diretor de “Aelita, Rainha de Marte”, Yakov Protazanov, já havia dirigido muitos filmes entre 1911 e 1918 e era considerado por muitos um gênio. Durante o período da Guerra Civil Russa (1918- 1922) que se seguiu após a revolução Bolchevique de outubro de 1917, Protazanov permaneceu exilado na Europa até ser persuadido a retornar à União Soviética em 1923 para produzir esse estranho e curioso sci fi

Definitivamente, “Aelita” é um filme de propaganda à causa da Revolução Socialista onde exorta os camaradas revolucionários a abandonarem fantasias e utopias para se entregar ao duro cotidiano da reconstrução do país. Mas Protazanov constrói a utopia marciana com uma estética de vanguarda construtivista e futurista tão vibrante e sedutora que acabou, nas entrelinhas, inspirando o futuro gênero cinematográfico.

O filme começa quando cientistas em toda parte do mundo recebem uma mensagem de rádio misteriosa e indecifrável vinda do espaço sideral. O engenheiro Loss e seu amigo Spiridinov são um dos vários cientistas que recebem a mensagem. Loss é um sonhador individualista e remanescente da antiga burguesia intelectual russa. Ele passa a ficar obcecado pela questão da origem e significado da mensagem. A ação passa então para Marte quando conhecemos Aelita, filha de Tuskub, ditador de um futurista estado totalitário que oprime uma classe trabalhadora que é armazenada em gigantescos congeladores em estado criogênico como reservatórios de força de trabalho.

Secretamente Aelita observa a Terra através de um novo e potente telescópio para observar o cotidiano russo e acaba se apaixonando por Loss. Os grandiosos cenários e roupas marcianas são concebidos através de uma fantástica estilização artística de vanguarda futurista e construtivista russo.

A obsessão de Loss cria essa fantasia de que uma aristocrata marciana o observa. Principalmente quando seu casamento entra em crise quando suspeita que sua esposa Natasha está caindo sob os encantos de um aristocrata oportunista chamado Erlich. Ele é um corrupto que cria um mercado paralelo de tickets de racionamento de alimentos.

Outro fato surpreendente é que “Aelita” mostra o duro cotidiano da reconstrução do país sob a União Soviética: o racionamento de alimentos, o rígido controle da burocracia do Estado representados pelos membros da NEP (Nova Política Econômica de Lênin) onde Natasha é um dos membros que controla provisões e moradias para todos, deslocamento de grandes massas em trens superlotados, caos, disfuncionalidade e, sobretudo, a corrupção representada pela figura do ex-aristocrata Erlich.

A obsessão de Loss leva a se concentrar em um projeto de construção de uma espaçonave que o leve a Marte. Enquanto isso Aelita em Marte está envolvida em intrigas palacianas que envolvem o ultra-secreto telescópio de alta resolução onde ela observa a Terra às escondidas.

A maior parte das sequências do filme se passa em Moscou. O que ocorre em Marte é eventualmente mostrado como fosse uma ilusão criada pelo estado de insatisfação de Loss, um intelectual que ainda não compreendeu seu papel dentro da revolução em andamento no país e que ainda se consome em sonhos pessoais. Mas as sequências do palácio da corte marciana causam impacto pelo arrojo e modernidade.

A estética moderna do futuro

O que impressiona em “Aelita” é que vemos nas sequências marcianas o início da construção no cinema da visão do futuro: planetas desconhecidos, robôs, tecnologias ultra-sofisticadas e inacessíveis para nós. Linhas angulosas e inclinadas que nos faz lembrar os futuros cenários do cinema expressionista alemão, estética clean com muitos vidros e transparências, roupas prateadas e cortes geométricos ousados, acessórios poligonais que acompanham o movimento do corpo dos personagens.

Embora a lição da nova moralidade revolucionária socialista seja, no filme, condenar essas imagens como utopias fantasiosas de um burguês alienado, Protazanov confere tanta força às sequências marcianas que fica impossível não se fascinar diante de um planeta que é o oposto do caos e disfuncionalidade mostrados no cotidiano de Moscou.

Os cenários e figurinos marcianos fazem uma síntese do futuro concebido pelas vanguardas artísticas do começo do século (Bauhaus, Futurismo italiano, etc) com a monumentalidade das formas angulosas de concreto, a leveza das transparências e o prateado como a cor da velocidade e arrojo, a cor dos mísseis e foguetes. Um futuro que, para nós do século XXI, soa como retro diante da nossa estética atual neobarroca sobre o futuro: aliens gosmentos, tentaculares e disformes; naves espaciais que mais parecem ferros-velhos voadores sujos e disfuncionais como em “Alien – o Oitavo Passageiro” (1979) ou “Prometheus” (2012); visões futuristas pós-apocalipse etc.

Imagens marcianas de Protazanov acabaram tornando-se tão atemporais que, vez ou outra, retornam como estética nostálgica na moda e música como na geométrica moda New Wave nos anos 1980 ou em bandas de rock de garagem atuais como “Man or Astroman” que homenageia em seus shows filmes de ficção científica como esse.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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