Um insaciável apetite por holofotes, por Felipe A. P. L. Costa

Um insaciável apetite por holofotes

por Felipe A. P. L. Costa

A divulgação científica é uma linha editorial estabelecida, mas ainda está em um patamar bem acanhado. Um dos sinais do nosso atraso é a monotonia autoral: as editoras concentram seus esforços em dois ou três autores, fazendo com que os holofotes da mídia mirem apenas esses nomes. O resto… Bem, o resto é o resto.

Embora haja bons livros de divulgação em português, a quantidade e a qualidade das obras disponíveis ao leitor brasileiro deixam muito a desejar. Para ter uma ideia, basta dizer o seguinte: o acervo de títulos publicados por uma única editora portuguesa é superior à soma de obras equivalentes publicadas pelo conjunto de todas as principais editoras brasileiras. (Não custa lembrar: a população brasileira equivale a 20 vezes a de Portugal, enquanto o PIB brasileiro é 10 vezes maior que o português.)

Não bastasse o acervo reduzido, as editoras brasileiras insistem em publicar obras de uns poucos autores. Alguém poderia argumentar que isso tem uma justificativa econômica imediata; todavia, no médio prazo, é um verdadeiro suicídio (como a monocultura), gerando embotamento e provincianismo. A convivência com poucos autores tende a sedimentar no leitor, entre outras coisas, a noção de que cada disciplina científica é um território governado por um ou outro ‘cacique’.

O caso da biologia evolutiva

Veja o caso da biologia evolutiva, uma das áreas de maior interesse e, por isso mesmo, uma das mais exploradas pelas editoras. Nas décadas de 1980 e 1990, o mercado brasileiro foi dominado pelas obras do cientista estadunidense Stephen Jay Gould (1941-2002), talvez um dos divulgadores mais conhecidos de todos os tempos. Fenômeno algo semelhante ocorreu um pouco antes com o renomado físico estadunidense Carl Sagan (1934-1996).

Mais recentemente, outros nomes ganharam destaque entre nós. Foi assim com autores como Ernst Mayr (1904-2005), E. [Edward] O. [Osborne] Wilson (nascido em 1929) e Richard Dawkins, este último alçado hoje à condição de celebridade internacional. (Um dos exemplos mais claros – e melancólicos – de como a fama turva o juízo do público ocorreu em 2013, quando Dawkins foi eleito o intelectual vivo mais importante em todo o mundo – ver matéria ‘Richard Dawkins named world’s top thinker in poll’, de John Dugdale, publicada no The Guardian, em 25/4/2013.)

O mais velho do casal de filhos de Clinton John Dawkins (1915-2010) e Jean Mary Vyvyan Ladner (nascida em 1916), Clinton Richard Dawkins nasceu em Nairóbi (Quênia), em 26/3/1941. Estudou na Universidade de Oxford (Inglaterra), onde fez também a sua carreira profissional [1]. Embora tenha trabalhado algum tempo fora da Inglaterra, lecionou em Oxford durante quase 40 anos (1970-2008). Entre 1968 e 1980, publicou (sozinho ou em coautoria) cerca de uma dezena e meia de artigos científicos originais, o mais conhecido deles tendo sido publicado em 1979 [2]. Desde a década de 1980, porém, suas publicações técnicas se resumem quase que exclusivamente a capítulos de livros, cartas, comentários a respeito do trabalho de terceiros e respostas a críticos; os artigos científicos originais minguaram.

Na década de 1970, deu início a uma bem-sucedida carreira literária. Tudo começou com O gene egoísta (1976), até hoje a sua obra de maior impacto. Em 1982, apareceu O fenótipo estendido, seu livro mais técnico e o único ainda hoje sem uma edição brasileira. Em seguida, foi a vez de O relojoeiro cego, talvez o seu segundo livro de divulgação mais importante. (Sou de opinião que tudo o que ele tinha de relevante a dizer foi dito nessas três primeiras obras.) A partir de meados da década de 1990, Dawkins publicou em média um novo livro a cada dois ou três anos. Eis a lista completa (título da versão brasileira; entre parêntesis, o ano de publicação da edição original): O rio que saía do Éden (1995); A escalada do monte improvável (1996); Desvendando o arco-íris (1998); O capelão do diabo (2003); A grande história da evolução (2004); Deus, um delírio (2006); O maior espetáculo da Terra (2009) e A magia da realidade (2011).

Cientista, divulgador ou guru?

Com o sucesso, vieram as viagens, as palestras e os debates. Tornou-se um polemista bem-sucedido, angariando ainda mais atenção. Embora a sua área de interesse fosse originalmente o estudo do comportamento animal, Dawkins rapidamente ampliou o seu leque de atuação.

No primeiro semestre de 2013, publicou An appetite for wonder (desconheço edição brasileira), livro que corresponderia ao primeiro volume de suas memórias. A imprensa, como de costume, foi generosa com o autor (e.g., ver matéria ‘Science, evidently, was in his genes’, de Janet Maslin, publicada no The New York Times, em 18/9/2013).

Até algum tempo atrás [3], ele opinava com desenvoltura e desembaraço a respeito de um variado leque de questões, muitas das quais de fácil apelo popular (e.g., ver matéria ‘Harry Potter fails to cast spell over Professor Richard Dawkins’, de Martin Beckford & Urmee Khan, publicada no The Telegraph, em 24/10/2008).

Nos últimos anos, um de seus alvos prediletos foi o ‘fundamentalismo religioso’, em especial o de origem muçulmana. Há quem o classifique de preconceituoso ou oportunista, mas há também quem chame a atenção para o seu despreparo – ver matéria ‘Atheists Richard Dawkins, Christopher Hitchens and Sam Harris face Islamophobia backlash’, de Jerome Taylor, publicada no The Independent, em 12/4/2013.

O pior, no entanto, é que Dawkins está longe de ser um exemplo de divulgador ou de intelectual que interage e aprende com os seus interlocutores. Ele apenas pontifica. (Posso estar exagerando, mas sugiro que o leitor contrariado procure ler alguma das resenhas ou algum dos inúmeros prefácios de livros que ele andou escrevendo nos últimos anos.)

Coda

Agindo assim, e permanecendo refratário às críticas (e.g., a posição intransigente que adotou contra a ideia de seleção de grupo), ele se comporta como um verdadeiro guru pós-moderno, mais ou menos nos moldes daquele escritor brasileiro que se recusou a dividir os holofotes com simples mortais, durante a Feira do Livro de Frankfurt (2013) – ver o artigo ‘Polêmica com Paulo Coelho desvia o público do essencial’, de Danielle Naves de Oliveira, publicado pelo Observatório da Imprensa, em 8/10/2013.

Antes de finalizar, caberia aqui um último registro. O conceito de ‘gene egoísta’, ao contrário do que alguns leitores de sua obra talvez imaginem, não é bem um contraponto à ideia de seleção de grupo nem foi criado por Dawkins; ele apenas ajudou a popularizar a expressão. E o pior de tudo isso: os gigantes de verdade por trás dessa história (i.e., a história do desenvolvimento da teoria evolutiva ao longo da segunda metade do século 20), como John Maynard Smith (1920-2004), George Price (1922-1975), George C. Williams (1926-2010) e William D. Hamilton (1936-2000), ainda são pouco ou nada conhecidos do leitor brasileiro – para detalhes e comentários adicionais, ver [4].

Notas

[1] Ele foi casado com Marian Stamp Dawkins (nascida em 1945), autora de Explicando o comportamento animal (Manole, 1989).

[2] Dawkins, R. & Krebs, J. R. 1979. Arms races between and within species. Proceedings of the Royal Society of London, B 205: 489-511.

[3] Em fevereiro de 2016, Dawkins teve um pequeno derrame cerebral. Passou algum tempo recluso, mas já se recuperou e voltou à ativa.

[4] Costa, F. A. P. L. 2017. O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna. Viçosa, Edição do autor.

[Nota adicional: versão anterior deste artigo foi publicada no Observatório da Imprensa, em 10/12/2013; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]

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