Direitos humanos

Ampliação da Repressão Transnacional e o Papel das Democracias, por Nadejda Marques

Ampliação da Repressão Transnacional e o Papel das Democracias

por Nadejda Marques

Governos autoritários têm o costume de perseguir e atacar seus cidadãos mais críticos ou dissidentes mesmo quando estes estão no exílio. Documentos do período da ditadura no Brasil demonstram como o Itamaraty serviu como o braço da repressão no exterior monitorando os exilados, fornecendo informações aos serviços de inteligência e controlando a emissão de passaportes e autorizações de viagem. O caso de Darcy Ribeiro é emblemático nesse sentido. Em 1974, ao descobrir que tinha um câncer no pulmão, pediu para voltar e se tratar no Brasil. Exilado desde 1968 e encontrando-se no Peru, Darcy teve seu pedido primeiramente negado por diplomatas brasileiros para depois ser autorizado pelo gabinete da presidência. Darcy costumava brincar com esse fato dizendo que os militares achavam que ele voltaria ao Brasil para morrer. Mas, para a nossa grande sorte, não foi bem assim.

Com o passar do tempo, essa forma de repressão transnacional por parte de governos autoritários tornou-se mais violenta incluindo práticas como intimidação, ataques, detenção e assassinato. Sua intensificação foi facilitada por uma parte pela disponibilidade de informações (tecnologias de informação, vigilância e monitoramento) e, por outra parte, pela rápida transferência de recursos e de pessoas de um local a outro.

Entre janeiro de 2014 e dezembro de 2021, a Freedom House documentou 735 incidentes de repressão física, direta e transnacional no mundo. Só em 2021, foram 85 incidentes. Talvez o incidente mais notório tenha sido quando autoridades da Bielorússia forçaram o pouso de um avião comercial para prender o jornalista e ativista Raman Pratasevich e sua companheira, Sofia Sapega, que estavam a bordo do avião que cruzava o espaço aéreo da Bielorússia.       

Não é surpresa que governos autoritários tendem a cooperar entre si, pois compartilham interesses, ideais e práticas anti-democráticas. O que sim causa surpresa e maior indignação é que essa repressão transnacional tende a piorar quanto maior a relutância e restrição de países ricos em receber imigrantes e refugiados. Ao implementar medidas que impedem que pessoas deslocadas ou em deslocamento cheguem a seus territórios para pedir asilo, as democracias contribuem para que mais refugiados busquem abrigo em países não democráticos onde ficam em situação mais vulneráveis à repressão transnacional.

Para piorar ainda mais esse cenário, atualmente também são comuns acordos de “cooperação” entre os EUA e países da UE com países terceiros ou corporações privadas no que é conhecido como externalização das fronteiras (prática que inclui restrições de vistos, acordos com países de trânsito ou de origem a respeito de deportações ou retornos forçados, sanções judiciais ou econômicas no transporte de imigrantes e o uso de entidades extra-governamentais para a segurança das fronteiras). Como se não bastasse o aumento da violência e das mortes nas fronteiras, o tráfico de pessoas e falta de investigação e responsabilização por graves violações dos direitos humanos em países terceiros, a externalização das fronteiras torna os imigrantes e pessoas que buscam asilo em instrumento de barganha entre os países, ora com valor monetário, ora como objeto de revanche diplomática como o que aconteceu em junho do ano passado quando ao menos 23 pessoas morreram na fronteira Melilla-Marrocos.

As democracias dão um tiro no próprio pé pois, ao negar abrigo e desrespeitar os direitos humanos dos imigrantes e refugiados, as democracias do mundo estão contribuindo para o enfraquecimento das instituições de direitos humanos, a ampliação da prática de repressão transnacional e o fortalecimento da onda antidemocrática mundial.

Nadejda Marques é escritora e autora de vários livros dentre eles Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício e a autobiografia Nasci Subversiva.

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Redação

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