Direitos humanos

Sofremos por décadas de racismo ambiental acumulado, por Nadejda Marques

A Ministra Anielle Franco até que pegou leve!

Sofremos por décadas de racismo ambiental acumulado

por Nadejda Marques

A dolorosa constatação de que o furacão Katrina, que devastou o litoral dos estados do Louisiana e do Mississippi nos Estados Unidos, em agosto de 2005, teve impacto mais acentuado nas comunidades mais pobres e aquelas habitadas principalmente por afro-americanos ou hispanos não foi exatamente uma surpresa. Historicamente, a segregação racial da região impôs padrões de assentamento e moradia que forçavam a população afro-americana a habitar regiões menos desejáveis, mais suseptiveis ao risco de inundação e mais isoladas. As indústrias, sobretudo as ligadas à petroquímica, atraídas pela mão-de-obra barata e o baixo custo das terras locais consolidou ainda mais esse padrão de assentamento com o agravante de trazer altos índices de poluição e depredação do meio ambiente aumentando ainda mais a situação de vulnerabilidade dessa população.

A longa lista de problemas que seguiram o Katrina, como a contaminação das fontes de água, inclusive por substâncias tóxicas, a destruição da infraestrutura básica de saneamento e de saúde pública intensificou o racismo e a desigualdade social. Era preciso que as políticas de resgate e reconstrução da região corrigissem isso. Era preciso que se fizesse justiça ambiental e já existiam instrumentos para tal.

Naquela época, o movimento de justiça ambiental nos Estados Unidos já tinha mais de duas décadas. Em 1982, uma mobilização popular organizou protestos contra um aterro com dejetos químicos industriais que poderia comprometer a saúde da população formada predominantemente por afro-americanos e hispanos no condado de Warren, na Carolina do Norte. Os protestos ganharam atenção nacional e o conceito de racismo ambiental criado pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr. se difundiu em vários estados. A partir dos anos 1990, um conglomerado de representantes de grupos afro-americanos afetados por racismo ambiental, acadêmicos, cientistas sociais e ativistas se reuniram em diversas ocasiões com a Agência de Proteção Ambiental (Envioronmental Protection Agency, EPA) para tratar de questões ligadas ao risco de maior exposição de minorias étnicas a altos níveis de poluição e das necessidades específicas das comunidades carentes que frequentemente são alvo de práticas discriminatórias que comprometem a saúde do seu ambiente seja por decisão institucional ou por negligência. Como resultado do trabalho desse movimento que passou a incluir a participação de várias organizações, foi criado, em 1994, o Escritório de Justiça Ambiental (Office of Envioromental Justice, OEJ) e, em 2000, a Comissão Nacional de Política Ambiental.

Apesar disso, a reconstrução pós-Katrina ainda foi marcada por racismo institucional, corrupção e ganância empresarial que exacerbaram a dor e o sofrimento causados pela calamidade ambiental. Quando autoridades do Louisiana solicitaram 700 ônibus para evacuar a população local, a FEMA (Agência Federal de Gestão de Emergências) enviou apenas 100 ônibus!! Bairros em Nova Orleans habitados principalmente por afro-americanos permaneceram inundados e sem acesso a serviços de saneamento básico por muito mais tempo que os bairros habitados por população branca. E, em 2015, dez anos após o furacão, um estudo levantou que 80% da população branca de Nova Orleans afirmava ter se recuperado quase plenamente, enquanto 60% da população afro-americana afirmou que ainda não havia se recuperado do impacto do furacão.

Soa familiar? Digamos que, nem toda semelhança é pura coincidência. Nas redes sociais, a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco ao se referir à tragédia nos municípios da zona norte da região metropolitana do Rio de Janeiro como “fruto dos efeitos do racismo ambiental e climático” acertou, mas pegou leve. No Brasil, sofremos por décadas de racismo ambiental acumulado. Grande parte da população brasileira encontra-se desproporcionalmente exposta a riscos ambientais. Ainda nas redes sociais, a Ministra traz um dado alarmante: “Entre 2020 e 2020 o número de mortes por enchentes, secas e tempestades foi 15 vezes maior em favelas e periferias.” Mortes evitáveis, mortes preveníveis.

Indiretamente, a Ministra também foi feliz em trazer o termo e conceito de racismo ambiental para um debate com um público mais amplo. Oxalá esse debate também venha a incluir formas de avançar a justiça ambiental no país ou, ao menos, como fiscalizar as medidas e planos do governo de ajuda humanitária e prevenção de enchentes, ainda sem anúncio oficial. De qualquer forma, a participação da Ministra Anielle Franco na Comitiva do Governo Federal assim como a dos representantes dos governos estadual e municipais é um bom sinal para o restabelecimento e a reconstrução da região fluminense lembrando que a luta por Justiça Ambiental é uma luta pelo direito de viver em um ambiente limpo e saudável, incluindo o ambiente de trabalho e moradia e, também, de receber uma proteção ambiental justa e equânime.

Nadejda Marques é escritora e autora de vários livros dentre eles Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício e a autobiografia Nasci Subversiva.

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Redação

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