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O novo boom do endividamento externo

Da Carta do IEDI

Pouca atenção tem sido dada à trajetória da dívida externa brasileira no período pós-crise, mas seu crescimento é digno de registro. O tema é muito relevante porque a dívida em moeda estrangeira é um destacado componente da fragilidade financeira potencial da economia e das empresas brasileiras diante de um eventual “choque externo”, como o Brasil vivenciou tantas vezes nas duas últimas décadas.

A abrupta retração dos fluxos de capitais para os países emergentes desencadeada pela crise financeira global de setembro de 2008 teve vida curta. Já no início de 2009, esses fluxos retornaram num contexto de juros historicamente baixos e expansão da liquidez nos países avançados. Fatores internos também fomentaram os fluxos, como as maiores taxas de crescimento, os juros mais elevados e a queda do risco relativo dos ativos emitidos por esses países (reflexo da saída bem sucedida da crise). Nesse contexto, as operações de arbitragem de juros (também conhecidas como carry trade) ressurgiram com toda força.

Enquanto o contexto de abundância de liquidez internacional, fomentado pelas políticas monetárias frouxas nos países avançados, constitui o determinante em última instância dos pronunciados aumentos no pós-crise dos fluxos de capitais para os países emergentes, os fatores internos são importantes para explicar sua distribuição regional e nacional. No âmbito da América Latina, o Brasil desponta como o país que absorveu o maior volume de fluxos financeiros no período pós-crise global.

Vários fatores (de natureza conjuntural e estrutural) explicam essa posição de destaque da economia brasileira, dentre os quais: as perspectivas de lucro com aplicações em ações de empresas produtoras de commodities ou com atividades voltadas para o mercado interno; o maior diferencial de juros do mundo; a retomada dos investimentos a partir de 2009, que se deparou, mais uma vez, com a insuficiência de fontes internas de financiamento de longo prazo.

A importância relativa desses fatores mudou desde a emergência do novoboom de capitais privados para os países em desenvolvimento, o que se refletiu na composição dos fluxos financeiros destinados para o país. É possível identificar cinco fases distintas desse boom de capitais estrangeiros para o Brasil no período que se estende de março de 2009 a abril de 2011.

A primeira corresponde ao imediato pós-crise e abrangeu o primeiro semestre de 2009. Foi caracterizada pela predominância do endividamento externo expresso na retomada dos “Outros investimentos estrangeiros”, especialmente no retorno dos créditos comerciais voluntários. Na segunda fase (julho de 2009 a fevereiro de 2010), refletindo a rápida reação da economia brasileira à crise e, além disso, o diferencial de juros interno versus externo, voltam os investimentos de portfólio em ações e em renda fixa no país (que ampliam o passivo externo, mas não configuram endividamento externo). Na terceira, entre março e setembro de 2010, o endividamento externo registra um crescimento significativo, superando os investimentos de portfólio em ações e renda fixa no país. Nesse período, a ampliação ainda maior do diferencial de juros estimulou as operações de arbitragem e a retomada do investimento impulsionou a demanda por recursos externos de longo prazo pelas empresas, que foi suprida, sobretudo, por empréstimos bancários.

Em uma curta fase, entre outubro a dezembro de 2010 (correspondendo à quarta fase), os investimentos de portfólio predominaram novamente devido, principalmente, às aplicações em ações, impulsionadas pela capitalização da Petrobrás. Já as aplicações em renda fixa no país, após atingirem valor elevado em outubro (US$ 1,8 bilhões), recuaram significativamente nos dois meses subsequentes em função da elevação do IOF sobre essa modalidade de ingresso de capitais. Esse controle de capital, todavia, estimulou as empresas e, como os dados confirmam, sobretudo, os bancos, a emitirem títulos de renda fixa no exterior, modalidade de investimento de portfólio que não estava sujeita ao IOF e que ganha impulso a partir de novembro. Ou seja, os agentes privados driblaram a regulação vigente para continuar usufruindo os ganhos de arbitragem associados ao excepcional diferencial de juros.

O movimento de arbitragem regulatória se intensificou na quinta e atual fase (janeiro a abril de 2011), pois os agentes privados também reagiram às medidas macroprudenciais na área creditícia e cambial adotadas pelo BCB em dezembro de 2010 e janeiro de 2011. Nesse contexto, as instituições bancárias intensificaram a captação de recursos externos, com duas finalidades: obter funding externo para suas operações de crédito, sobre o qual não incide recolhimento compulsório (que foi majorado); realizar operações de arbitragem de juros mediante emissão de títulos e a contratação de empréstimos de curto prazo no exterior, diante da imposição de limites às posições vendidas em dólar. Simultaneamente, as empresas não-financeiras também ampliaram o endividamento externo, em resposta à alta do custo do crédito doméstico já que aumentou a taxa básica de juros e os spreads bancários tiveram elevação após as medidas macroprudenciais.

Após a imposição do IOF sobre esse endividamento, o movimento de “arbitragem regulatória” teve continuidade e passou a abranger modalidades de maior prazo de duração e crédito comercial (inclusive os ACCs, que aumentaram significativamente em abril). Diante da abundância de liquidez internacional e baixa aversão ao risco a nível global, as medidas não foram eficazes em desestimular o ingresso de capitais, mas tiveram o efeito colateral positivo de alongar o prazo da dívida externa. Deve ser sublinhado que esse movimento de “arbitragem regulatória” envolveu possivelmente até mesmo os fluxos de IDE, como evidencia o forte crescimento dos empréstimos intercompanhias, que se acelera a partir de outubro de 2010, quando são adotadas as primeiras medidas de regulação. A evolução quantitativa e o perfil do endividamento por tipo de tomador no período pós-crise podem ser mais bem apreendidos na nova metodologia de classificação dos dados de estoque de dívida externa, que passou a ser divulgada pelo Banco Central do Brasil a partir de abril de 2011.

Considerando todo o período pós-crise (janeiro de 2009 até o último dado disponível, abril de 2011), o endividamento externo brasileiro cresceu extraordinariamente. Em valor, aumentou US$ 84,1 bilhões ou 42,4%. Tal resultado foi condicionado pelas captações dos bancos (+63,%) – cuja participação no total passou de 37,4% para 42,8% no mesmo período – e dos “Outros setores” (51,8%), no qual se destacam as empresas não-financeiras. Como nesses grupos predominam agentes privados, pode-se afirmar que o endividamento externo pós-crise é um processo intenso e virtualmente todo ele privado, sob a liderança dos bancos. A dívida correspondente ao governo e autoridade monetária aumentou 8,7%. Os dados acima não incluem a dívida decorrente de empréstimos intercompanhias que cresceu outros US$ 38,2 bilhões, ou 59,2%. No total, incluindo os empréstimos intercompanhias, a dívida externa brasileira foi ampliada no período pós crise em US$ 122,3 bilhões ou 46,5%.

Caberia observar que esse mesmo padrão foi anteriormente observado no período pré-crise, ou seja, de 2005 a 2008, o que reforça o ponto segundo o qual o conhecido e louvado desindividamento externo brasileiro nos anos 2000 foi um processo empreendido pelo setor público. Este, de um lado, reduziu sua dívida interna em títulos indexada ao câmbio e sua dívida nas modalidades de empréstimos e, de outro, ampliou a formação de reservas cambiais, com o efeito final de transformar uma posição líquida altamente devedora em posição credora. Um pronunciado endividamento externo constituía uma fonte de crise fiscal e de dúvidas sobre a sustentabilidade do setor público brasileiro, que foi removida com a transformação de posição líquida devedora para credora da dívida externa pública. Isto viria a colaborar decisivamente para que o Brasil respondesse com muito maior solidez ao efeito-contágio da recente crise internacional.

Do lado privado, no entanto, as coisas se passaram de forma diferente. Primeiro, porque, a antiga dependência do financiamento externo de longo prazo (o BNDES representa a única fonte interna para recursos a longo prazo) e do financiamento do comércio exterior, foi mantida intacta. Segundo, porque no pós crise, o endividamento do setor privado foi ainda mais incentivado já que a liquidez internacional aumentou sobremaneira e se intensificaram as operações de arbitragem de juros. Após a adoção das medidas prudenciais (no final de 2010 e início de 2011), a estratégia de “arbitragem regulatória” impulsionou ainda mais esse endividamento. O primeiro fator é estrutural, além de ser inevitável até que o Brasil disponha de um desenvolvido mercado de capitais e, sendo assim, supre uma lacuna, mas o segundo, não, devendo ser controlado, seja porque causa grande valorização da moeda, seja porque é fonte de instabilidade futura.

A experiência histórica mostra que os fluxos de capitais para os países emergentes são cíclicos. Ou seja, em algum momento, a abundância de capitais – determinada, em última instância, por fatores externos – se reverte. O momento da reversão e sua causa são sempre incertos, mas suas consequências são mais do que previsíveis: causam variações súbitas na cotação das moedas, rápidas acelerações inflacionárias somente controladas por elevações intensas nas taxas de juros que precipitam, na maioria das vezes, dolorosas recessões.

No ciclo atual, a reversão pode ser provocada por uma alta dos juros nos EUA e/ou por um evento que eleve a aversão global ao risco, como um agravamento da crise dos países europeus da periferia. No caso da economia brasileira, a vulnerabilidade à reversão dos fluxos de capitais é agravada pelo perfil do endividamento externo, ancorado, em grande parte, em operações de arbitragem de juros dos bancos, atraídas pelo maior diferencial entre juros internos e externos que há em todo o mundo.

Diante da abundância de liquidez internacional e da característica historicamente comprovada de instabilidade dos fluxos de capitais, somente uma estratégia abrangente e dinâmica de gestão desses fluxos (que envolva controles de fluxos de capitais, bem como instrumentos de regulação financeira prudencial) seria eficaz. Ou seja, essa gestão deveria abranger as diversas modalidades de fluxos de capitais intrinsecamente voláteis e estar atenta, constantemente aos mecanismos de arbitragem regulatória, se antecipando ou reagindo prontamente às estratégias adotadas pelos agentes para circunscrever os controles vigentes.

O Brasil corretamente avançou na concepção de política econômica ao aplicar relevantes medidas macroprudenciais nas áreas do câmbio e do crédito, acompanhando, aliás, o que outros países fazem e o que vem sendo recomendado por agências internacionais como o FMI, mas é preciso melhorar os mecanismos de controle da “arbitragem regulatória”.

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O Novo Boom de Fluxos de Capitais para os Países Emergentes. Abrupta retração dos fluxos de capitais para os países emergentes desencadeada pela crise financeira global teve vida curta. No início de 2009, esses fluxos retornaram num contexto de juros historicamente baixos e expansão da liquidez nos países avançados. Assim, a resposta de política monetária à crise deu origem, num curto período de tempo, ao quarto boom de fluxos de capitais para a periferia (que, em algum momento, se converte em burst) desde o colapso do acordo de Bretton Woods, em 1973. Relembrando, os três ciclos anteriores foram: dos anos 1970-89; de 1990-2002; de 2003-08 (Akyüz, 2011).

Como nos episódios anteriores, o boom atual foi determinado por fatores externos (push factors): as condições monetárias frouxas no centro e, em especial, no país emissor da divisa-chave, os Estados Unidos. Ademais, a dimensão inédita das ações anticíclicas conseguiu evitar a depressão, contribuindo para a rápida queda da aversão ao risco. Porém, fatores internos (pull factors) também fomentaram os fluxos. A queda do risco relativo dos ativos emitidos pelos países emergentes (reflexo da saída bem sucedida da crise) contribuiu para a ampliação do diferencial de juros. Nesse contexto, as operações de arbitragem de juros (também conhecidas como carry trade) ressurgiram com toda força, ancoradas, por excelência, em empréstimos em dólar. A rápida retomada do crescimento nesses países também reforçou as expectativas de valorização cambial e dos ativos, estimulando os investimentos de portfólio e direto externo.

De início, o retorno dos fluxos beneficiou as economias emergentes que superaram rapidamente o efeito-contágio da crise. Gradualmente, como nos ciclos anteriores, a seletividade foi substituída pela não diferenciação dos riscos devido a impulsos adicionais vindos do centro (crise soberana da área do euro, que beneficiou o risco relativo dos ativos emergentes e, principalmente, a segunda rodada de afrouxamento quantitativo do Federal Reserve) e, em menor medida, à nova conjuntura macroeconômica nessas economias. No início de 2010, vários bancos centrais começaram a elevar suas taxas de juros (fomentando ainda mais aquelas operações) em resposta às pressões inflacionárias decorrentes do sobreaquecimento e da alta dos preços das commodities (associada à busca de ganhos especulativos nos mercados futuros, bem como à retomada da economia mundial sob liderança da China e a choques de oferta) (ver Carta Iedi n.465).

No que se refere às modalidades de fluxos de capitais, os dados do Institute of International Finance (IIF) revelam que os fluxos financeiros (investimento de portfólio e empréstimos bancários) têm predominado no ciclo pós-crise. Enquanto na fase de alta do ciclo pré-crise (2003-2007), sua participação anual média no total foi de 60%, no boom atual ela atingiu 71%; em 2010, especificamente, eles responderam por 72% do total. Ademais, no âmbito desses fluxos, destacam-se aqueles atraídos pelo diferencial entre os juros externos e internos (ou seja, empréstimos bancários e investimentos de portfólio em renda fixa, seja no mercado doméstico, seja no mercado internacional).

As Fases do Novo Boom de Fluxos Financeiros. Enquanto o contexto de abundância de liquidez internacional, fomentado pelas políticas monetárias frouxas nos países avançados, constitui o determinante em última instância dos fluxos de capitais para os países emergentes, os fatores internos (push factors) são importantes para explicar sua distribuição regional e nacional.

No âmbito da América Latina, o Brasil desponta como o país que absorveu o maior volume de fluxos financeiros no período pós-crise financeira global (IMF, 2011). Vários fatores (de natureza conjuntural e estrutural) explicam essa posição de destaque da economia brasileira, dentre os quais:

as perspectivas de lucro com aplicações em ações de empresas produtoras de commodities ou com atividades voltadas para o mercado interno (como construção civil, comércio varejista e sistema financeiro); o maior diferencial de juros do mundo (que se ampliou ainda mais a partir de março de 2010, com o início de uma nova fase de elevação da meta da taxa Selic);a retomada dos investimentos a partir de 2009, que se deparou, mais uma vez, com a insuficiência de fontes internas de financiamento de longo prazo; vale lembrar que os recursos do BNDES, além de limitados, são destinados, na sua maior parte, para grandes empresas; ou seja, um amplo leque de pequenas e médias empresas não têm acesso às linhas de crédito dessa instituição.

A importância relativa desses fatores se alterou desde a emergência do novo boom de capitais privados para os países emergentes, o que se refletiu na composição dos fluxos financeiros destinados para o país. É possível identificar cinco fases distintas desse boom no período que se estende de março de 2009 a abril de 2011.

A primeira fase abrangeu o primeiro semestre de 2009 e se caracterizou pela predominância do endividamento externo devido à retomada dos “Outros investimentos estrangeiros” (que incluem as diversas modalidades de empréstimos bancários), ancorada, por sua vez, no retorno dos créditos comerciais voluntários, bem como das operações de arbitragem de juros pelos bancos mediante a captação de empréstimos de curto prazo no exterior (a partir de maio).

Na segunda fase (julho de 2009 a fevereiro de 2010), em contrapartida, os investimentos de portfólio em ações e em renda fixa no país (que ampliam o passivo externo, mas não configuram endividamento externo) assumiram a liderança. Nessa fase, as aplicações na Bovespa e em ações de empresas brasileiras no exterior (mediante ADRs) são impulsionadas pelos baixos preços vigentes em função da forte desvalorização provocada pela crise global, pela rápida e bem sucedida superação do efeito-contágio dessa crise e pela alta dos preços das commodities (que beneficiam, respectivamente, as ações das empresas com atividades voltadas para esse mercado e dos setores agropecuário e extrativista). Um fator adicional de impulso a esses investimentos foi a abertura de capital do Santander, que respondeu pela maior parte do ingresso de US$ 14,5 bilhões em ações em outubro de 2009.

Já na terceira fase (março a setembro de 2010), o endividamento externo registra um crescimento significativo, superando os investimentos de portfólio em ações e renda fixa no país. As modalidades de dívida bancária são as principais responsáveis por essa trajetória, mas o endividamento securitizado (por meio de emissão de títulos no exterior) também percorre um movimento ascendente. Nesse período, a ampliação do diferencial de juros estimulou ainda mais as operações de arbitragem e a retomada do investimento impulsionou a demanda por recursos externos pelas empresas, que foi suprida, sobretudo, por empréstimos bancários.

Na quarta fase (outubro a dezembro de 2010), os investimentos de portfólio predominam novamente devido, sobretudo, às aplicações em ações (no país e no exterior), impulsionadas pela capitalização da Petrobrás. Já as aplicações em renda fixa no país, após atingirem US$ 1,8 bilhões em outubro, recuaram significativamente nos dois meses subseqüentes em função da elevação do IOF sobre essa modalidade de ingresso de capitais (de 2% para 4% no dia 4 de outubro e de 4% para 6% no dia 18 de outubro – ver Quadro).

Esse controle de capital, todavia, estimulou as empresas e, sobretudo, os bancos, a emitirem títulos de renda fixa no exterior, modalidade de investimento de portfólio que não estava sujeita ao IOF e que ganha impulso a partir de novembro. Ou seja, os agentes privados circunscreveram a regulação vigente para continuar usufruindo os ganhos de arbitragem associados ao excepcional diferencial de juros (que, inclusive, se ampliou a partir de dezembro devido à alta da meta da taxa Selic).

Esse movimento de arbitragem regulatória se intensificou na quinta fase (janeiro a abril de 2011), pois esses mesmos agentes (e, mais uma vez, sobretudo os bancos) também reagiram às medidas macroprudenciais na área creditícia e cambial adotadas pelo BCB em dezembro e janeiro, quais sejam: (i) o aumento do adicional do compulsório sobre depósitos à vista e a prazo e do capital mínimo para operações de crédito às pessoas físicas com prazo superior a 24 meses; (ii) a instituição de um recolhimento de depósito compulsório (em reais) de 60% do valor das posições vendidas em câmbio assumidas pelos bancos (ver Quadro).

Nesse contexto, as instituições bancárias intensificaram a captação de recursos externos (mediante a colocação de títulos no exterior e, principalmente, empréstimos bancários), com duas finalidades. Por um lado, obter funding externo para suas operações de crédito, sobre o qual não incide compulsório, escapando, assim, da regulação macroprudencial. Essa estratégia fica evidente quando comparamos a taxa de crescimento das operações de crédito às pessoas jurídicas por tipo de funding. Enquanto as operações com recursos internos cresceram 4% no acumulado do ano até abril, aquelas com recursos externos avançaram 9,6%, impulsionadas pelas operações de Adiantamento de Contratos de Câmbio e Financiamento às importações.

Por outro lado, diante da imposição de limites às posições vendidas em dólar (e, assim, dos ganhos de arbitragem por meio da aplicação do valor correspondente em reais no mercado financeiro doméstico), os bancos ampliaram a emissão de títulos de curto prazo no exterior (em janeiro) e a contratação de empréstimos de curto prazo (de dezembro a março), que constituem mecanismos alternativos para usufruir esses ganhos.

Ademais, diante da alta do custo do crédito doméstico (já que os bancos elevaram os spreads em resposta às medidas macroprudenciais) e das condições amplamente favoráveis, de custo e prazo, no mercado financeiro internacional, as empresas não-financeiras também ampliaram o endividamento externo (tanto securitizado como bancário) na quinta fase. Após a imposição do IOF sobre esse endividamento (no final de março, sobre captações de prazo inferior a um ano, estendida para operações de até dois anos no início de abril – ver Quadro), o movimento de arbitragem regulatória teve continuidade.

As modalidades de maior prazo de duração e o crédito comercial ganharam impulso, já que os investidores e bancos internacionais (especialmente, japoneses e americanos) estão ávidos por aplicações rentáveis (Lucchesi, 2011; Lucchesi e Pacheco, 2011). O recorde de emissão dos chamados “junk bonds” (títulos de alto rendimento) no primeiro quadrimestre do ano constitui uma evidência adicional do elevado apetite por risco vigente no mercado financeiro internacional (Wigglesworth, 2011).

Nesse contexto, a emissão de notes e commercial papers atingiu US$ 5,3 bilhões em abril, maior cifra desde outubro de 1998, e os créditos comerciais de curto prazo (essencialmente, operações de ACCs, sobre as quais não incide IOF e que possibilitam a obtenção de ganhos de arbitragem) somaram US$ 3,8 bilhões, patamar não-registrado desde abril de 2007. Ou seja, ambas as modalidades atingiram os valores recordes do período pós-crise. Ademais, os empréstimos de longo prazo também foram expressivos, impulsionados por operações de crédito sindicalizado, pré-pagamento de exportação e emissão de bônus perpétuo.

Finalmente, é importante mencionar o expressivo crescimento dos empréstimos intercompanhias, que se inicia em setembro de 2010 e se acelera a partir de outubro, quando são adotadas as primeiras medidas regulatórias. A mudança na trajetória dessa modalidade de IDE (que se manteve num patamar praticamente nulo entre julho de 2009 e agosto de 2010) sugere que ela também foi utilizada como um canal adicional de arbitragem regulatória. Ou seja, as empresas e instituições financeiras ampliaram esses empréstimos (isentos de IOF) para usufruir os excepcionais ganhos de arbitragem de juros. No mesmo período, os fluxos de IDE em participação no capital também registraram crescimento expressivo devido, sobretudo, ao ingresso de recursos no setor de serviços (com destaque para as atividades de “Telecomunicações” e “Eletricidade, gás e outras utilidades”).

O Perfil do Novo Endividamento Externo. A evolução quantitativa e o perfil do endividamento por tipo de tomador no período pós-crise podem ser apreendidos na nova metodologia de classificação dos dados de estoque de dívida externa, que passou a ser divulgada pelo Banco Central do Brasil em abril de 2011. Enquanto anteriormente os dados eram classificados em dois grupos (“Setor público não-financeiro” e “Setor privado e público financeiro”), essa metodologia distingue quatro setores institucionais (BCB, 2007):

Autoridade monetária: transações realizadas pelo Banco Central;Governo geral: transações efetuadas pelos governos federal, estaduais e municipais, pelos fundos de seguridade sociais desses três níveis de governo e pelas instituições sem fins lucrativos controladas pelas entidades governamentais;Bancos: transações efetuadas por instituições (privadas ou públicas) para as quais a intermediação financeira é a principal atividade e cujo passivo é formado por depósitos (à vista ou a prazo), ou algum instrumentos financeiros similar. Assim, estão incluídos nesse setor: bancos comerciais, múltiplos e de investimento; associações de poupança e empréstimos; cooperativas de créditos; sociedades de crédito, investimentos e financiamento, e; sociedade de crédito imobiliário;Outros setores: transações realizadas por empresas não-financeiras (públicas e privadas), companhias de seguro, fundos de pensão, outras instituições financeiras que não aceitam depósitos (sociedades corretoras de câmbio e distribuidoras de títulos e valores mobiliários; bolsas de valores e câmaras ou prestadoras de clearing cambial) e pessoas físicas.

Considerando todo o período pós-crise (janeiro de 2009 a abril de 2011), o endividamento externo cresceu 42,4%, impulsionado pelas captações dos bancos (+63,%) – cuja participação no total passou de 37,4% para 42,8% no mesmo período – e dos “Outros setores” (51,8%), no qual se destacam as empresas não-financeiras. Já a dívida do governo aumentou apenas 8,7% devido, exclusivamente, à ampliação do passivo do BCB no primeiro trimestre de 2009, ainda como reflexo do efeito-contágio da crise. Como o estoque de reservas internacionais atingiu US$ 371 bilhões em abril, a não quitação desse passivo (US$ 4,7 bilhões no mesmo mês) foi uma opção da autoridade monetária. Em termos líquidos, o governo geral e a autoridade monetária são credores em moeda estrangeira.

Como nos grupos “Bancos” e “Outros setores” predominam agentes privados (as exceções são o Banco do Brasil e a Petrobrás, respectivamente), pode-se afirmar que o endividamento externo pós-crise é um endividamento privado sob liderança dos bancos (por sinal, o mesmo padrão observado no período pré-crise, ou seja, de 2005 a 2008 – ver Carta Iedi n. 434). A dívida desses agentes cresceu 63% na comparação de abril de 2011 com dezembro de 2008, enquanto no caso dos “Outros setores” o aumento (também expressivo) foi de 51,8%.

A trajetória de endividamento externo privado teve início em 2009 (quando emergiu o novo boom de fluxos de capitais) sob a liderança das empresas, em função da regularização das linhas de crédito comercial (que também se tornaram escassas e caras quando a crise se tornou sistêmica, no último trimestre de 2008). O endividamento bancário ganhou impulso em 2010, quando avançou 62,1%, em função, sobretudo, do forte crescimento do passivo de curto prazo (especificamente, +79,2%). No âmbito dos “Outros setores”, o crescimento, embora menos intenso, também foi significativo (+28%). O aumento da rubrica “empréstimos de longo prazo” confirma a hipótese levantada acima: num contexto de retomada dos investimentos, as empresas buscaram fontes de financiamento alternativas, mais baratas e com maior prazo de duração do que as disponíveis no mercado doméstico.

De forma sincrônica com a nova fase de alta da meta de taxa Selic (que se inicia em março de 2010), as instituições financeiras residentes aproveitaram as condições internacionais favoráveis (políticas monetárias frouxas e apetite por risco dos investidores globais) para realizar operações de arbitragem. Em 2010, a ampliação das posições vendidas no mercado de câmbio (registradas em “Outros passivos de dívida” – ver Tabela) foi o principal mecanismo utilizado: essa rubrica cresceu 597,9% em dezembro de 2010 frente ao mesmo mês do ano anterior. Ademais, os dados disponíveis mostram que a alta se concentrou no terceiro trimestre de 2010, antes da primeira rodada de controles de capitais. No primeiro trimestre de 2010 (após as medidas macroprudenciais na área creditícia e cambial), o endividamento dos bancos se acelera novamente (+15,8% contra 4,5% no último trimestre de 2010), mas, agora, ancorado, sobretudo, em instrumentos de mercado monetário (ou seja, emissão de títulos de curto prazo no exterior). Além da isenção de IOF (naquele momento), essa forma de captação não estava sujeita a recolhimento compulsório e, assim, também se tornou uma alternativa de funding para as operações de crédito doméstico.

Com a imposição do IOF sobre captações externas, o endividamento bancário perdeu ritmo, tendo avançado somente 1,3% em abril. Esse resultado, contudo, reflete a retração do endividamento de curto prazo (+4,9%), que foi mais do que compensada pelo aumento do passivo de longo prazo (+7,4%), cuja participação no total passou de 51% em março para 54% em abril, respectivamente. O mesmo movimento foi observado no caso dos “Outros setores”. Como os dados de fluxo já tinham evidenciado, para escapar desse novo controle de capital, as empresas substituíram dívida de curto prazo (cujo estoque recuou 5,3% entre março e abril) por dívida de longo prazo (+5,2%), que respondia por 90% e 91% do total em março e abril, respectivamente. Com isso, o endividamento total dos “Outros setores” aumentou 4,2% no mesmo período. Evidentemente, essa estratégia foi bem sucedida devido às condições vigentes nos mercados financeiros internacionais. Ou seja, diante da abundância de liquidez internacional e baixa aversão ao risco, as medidas não foram eficazes em desestimular o ingresso de capitais, mas tiveram o efeito colateral positivo de alongar o prazo da dívida externa

Em suma, os dados de estoque confirmam as hipóteses levantadas na análise dos fluxos financeiros: num ambiente de excesso de liquidez internacional e elevado apetite por risco, esses agentes recorreram ao endividamento externos para usufruir ganhos de arbitragem de juros; obter fontes alternativas de financiamento em condições de prazo e custo mais favoráveis, e; escapar da regulação governamental (controles de capitais e medidas macroprudenciais).

Perspectivas. O Institute of International Finance (IIF) e o Fundo Monetário internacional (FMI) projetam a continuidade do boom de fluxos de capitais privados para as economias emergentes em 2011 e 2012 devido a fatores estruturais (maiores taxas de crescimento em relação aos países avançados e fundamentos macroeconômicos sólidos) que sustentariam o movimento de realocação dos portfólios globais em direção aos ativos emitidos por essas economias.

A experiência histórica mostra, contudo, que esses fluxos são cíclicos. Ou seja, em algum momento, a abundância de capitais – determinada, em última instância, por fatores externos – se reverte. O momento da reversão e sua causa são sempre incertos, como destaca Akyüz (2011). No ciclo atual, a reversão pode ser provocada por uma alta dos juros nos EUA e/ou por um evento que eleve a aversão global ao risco, seja o agravamento da crise soberana do euro, seja uma crise cambial numa economia emergente decorrente dos desequilíbrios gerados pelos próprios fluxos (como nos anos 1990).

Nesse contexto, embora várias economias emergentes possuam hoje condições macroeconômicas favoráveis e maior dinamismo econômico do que os países avançados, suas moedas serão, mais uma vez, os primeiros alvos dos movimentos de fuga para qualidade (como evidenciou a falência do Lehman Brothers). No caso da economia brasileira, a vulnerabilidade à reversão dos fluxos de capitais é agravada pelo perfil do endividamento externo, ancorado, em grande parte, em operações de arbitragem de juros dos bancos, atraídas pelo maior diferencial de juros do mundo e viabilizadas pela existência de mercados de derivativos líquidos e profundos, que possibilitam a realização de hedge cambial.

Diante das condições atualmente vigentes no mercado financeiro internacional, as medidas adotadas até o momento tiveram somente o efeito colateral (positivo) de alongar o prazo da dívida externa. Somente uma estratégia abrangente e dinâmica de gestão dos fluxos de capitais (que envolva controles de capitais, bem como instrumentos de regulação financeira prudencial) seria eficaz no sentido de desestimular o ingresso de recursos externos (e, conseqüentemente, conter o endividamento externo e a trajetória de apreciação cambial). Ou seja, essa gestão deve abranger as diversas modalidades de fluxos de capitais e estar atenta, constantemente aos mecanismos de arbitragem regulatória, se antecipando ou reagindo prontamente às estratégias adotadas pelos agentes privados para circunscrever os controles vigentes.

Bibliografia

AKYÜZ, Y. Capital flows to developing countries in a historical perspective: will the current boom end with a bust and how? South Center, mar.2011.

LUCCHESI, C. P. Empresas alongam prazos em US$ 7 bi de empréstimos externos. Valor Econômico, 3 de maio de 2011, p. C8.

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Luis Nassif

Luis Nassif

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