Uma demonstração biológica, por Gustavo Gollo

Umas duas décadas atrás, propus uma surpreendente demonstração biológica, a única de que tenho notícia. O que, a princípio, parecia uma mera curiosidade, acabou revelando consequências significativas.

                      

Uma demonstração biológica

por Gustavo Gollo

A existência de “Ring Species” é impossível

Alguns tipos de espécies têm merecido atenção especial em função de certas peculiaridades. Entre tais grupos, há aqueles que os livros sobre evolução se referem como se dispondo em uma “distribuição de espécies em anel”, ou, “ring species”. De acordo com estes textos, esta distribuição seria caracterizada, pela seguinte situação: em uma dada localidade, coexistem duas espécies aparentadas, mas distintas, caracterizadas normalmente por diferenças físicas não muito grandes, mas diagnosticáveis principalmente pelo isolamento reprodutivo entre indivíduos dos dois tipos (como as duas gaivotas na parte mais baixa da figura, a mais clara e a mais escura, que não intercruzam entre uma e outra).

Cada um dos tipos se distribui ao longo de uma direção distinta. Entre tal percurso, as formas vão sofrendo alterações graduais até se encontrarem novamente, sem que os indivíduos de cada tipo apresentem diferenças físicas ou comportamentais diagnosticáveis. Deste modo, duas espécies coexistiriam em certa localidade, mas apresentariam uma diferenciação gradual levando de uma espécie à outra, ao longo de uma vasta extensão aproximadamente circular.

A descrição corresponde à situação esquemática em que dois indivíduos, A e Z, pertencentes a espécies distintas, coexistem em uma dada área. Apesar disto, há uma série de indivíduos A,B,C… …X,Y,Z, tais que os pares A e B pertencem à mesma espécie, B e C pertencem à mesma espécie… , … e Y e Z pertencem à mesma espécie.

Ainda que haja uma grande discussão sobre a definição de espécie, existem certas pré-condições que devem ser satisfeitas por qualquer candidata a esta definição. Entre estas pré-condições, uma delas é que um indivíduo não pode pertencer a duas espécies distintas. Híbridos, por exemplo, devem ser classificados como pertencentes a uma espécie híbrida ou, então, como não pertencentes a nenhuma espécie. De forma nenhuma, no entanto, podemos aceitar uma definição que permita que um indivíduo pertença a duas espécies distintas.

Pressupondo tal consideração, podemos demonstrar a impossibilidade da existência de “ring species” de maneira trivial, de modo a ser compreendida por qualquer pessoa inteligente, assim:

Tomemos, como na descrição acima, a sucessão de pares de indivíduos de mesma espécie: AB, BC, CD… …XY, YZ.

Consideremos que o indivíduo A pertence à espécie argentatus.

Como A e B pertencem à mesma espécie, então B também pertence à espécie argentatus.

Do mesmo modo, como B e C pertencem à mesma espécie, C pertence a argentatus, o mesmo valendo para C e D, e, assim, sucessivamente até Z, demonstrando que todos os indivíduos da lista pertencem a uma única espécie, argentatus.

Supondo, ao contrário, que A e Z pertencem a espécies diferentes, que A pertença, digamos, à espécie argentatus, Z a fuscus, como cada indivíduo pertence a uma única espécie, um raciocínio análogo revelará a existência de algum par de indivíduos na lista que não pertencem à mesma espécie.

Desse modo, o pressuposto de que cada indivíduo só pode pertencer a uma única espécie, garante a conclusão de que: ou todos os indivíduos da lista pertencem a uma única espécie, ou a lista aglutina indivíduos de duas espécies distintas, assim como podemos agrupar cães e gatos em uma única lista.

Assim, indivíduos esquematizados da maneira proposta acima, pertencem, todos, à mesma espécie, ainda que as duas formas extremas não sejam diretamente intercruzantes.

Desse modo, a conceituação de “ring species” mostra-se redundante ou contraditória.

Uma consequência significativa disso é a imposição de que a definição biológica de espécie, a mais utilizada pelos biólogos, seja reenunciada sob a forma:

Espécies são conjuntos de populações real, ou potencialmente intercruzantes, direta, ou indiretamente, e reprodutivamente isoladas de outros grupos.

Ciência viva

O interessante argumento revela também o tamanho de nossa ignorância: o quanto ainda não sabemos; fato alentador, aliás, atestando vivermos em uma época em que a ciência permanece viva, em construção, desde suas bases. O papel dos cientistas consiste exatamente em definir os conceitos básicos que compõem a ciência e conectá-los entre si e com conceitos secundários, também desenvolvidos por eles, tecendo, desse modo, as redes que constituem as teorias.

O argumento apresentado no início desse texto, embora absurdamente elementar, é suficiente para chacoalhar bases da biologia, uma das ciências mais tradicionais, mostrando que a ciência continua viva, podendo sofrer alterações até em suas bases.

Uma peculiaridade abstrusa

Apesar da simplicidade extrema, a experiência me sugere fortemente que a argumentação comoverá apenas uma parcela muito ínfima, se tanto, dos biólogos convencionais, formados na tradição anterior, revelando outro aspecto científico bastante paradoxal: uma irracionalidade fortemente arraigada à tradição. A racionalidade humana, ao contrário do que alardeamos, é um fenômeno bem incipiente, até mesmo os cientistas sucumbem a apelos irracionais.

Parecerá a jovens racionais impossível imaginar pessoas cultas defendendo posição contrária à proposta nesse texto. Surpreendentemente, no entanto, quase todos os da área se comportarão assim, irracionalmente, determinados pelo costume e pela autoridade. Nossa racionalidade ainda é bem precária.

A simplicidade do argumento proposto acima permite que percebamos o quanto a irracionalidade ainda governa nosso mundo.

Uma curiosidade epistemológica

Embora essa demonstração bastante trivial tenha sido apresentada duas décadas atrás, ela não é aceita até hoje, nem foi a definição de espécie alterada. Tal definição é uma das mais fundamentais de toda a biologia.

Creio que essa não aceitação decorra de uma característica lamentável do século XX, felizmente em extinção: a especialização radical, a formação de especialistas absurdamente ignorantes quanto a tudo o que não pertença a sua minúscula área de estudo. Conhecimentos elementares de lógica permitiriam aos especialistas lidar corretamente com a questão que, penso, um estudante inteligente de nível médio é capaz de acompanhar.

O episódio suscita interessantes questões de filosofia e história da ciência.

O vídeo apresenta versão prévia da demonstração:

 

Redação

Redação

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  • Natureza acrática

    A complexidade é tão grande que, para o nosso entendimento, é quase uma acrasia. Por mas que nos esforcemos dificilmente conseguiremos uma definição ou uma regra que contemple toda a diversidade própria da natureza.

    • “Por mas que nos esforcemos

      “Por mas que nos esforcemos dificilmente conseguiremos uma definição ou uma regra que contemple toda a diversidade própria da natureza.” E só quando abdicamos dessa busca é que começamos a fazer ciências. Conceitos científicos devem ser simples e despojados.

  • Título trocado

    O título original desse texto, “Uma demonstração biológica” foi trocado pelos editores, por azar, por um outro, bastante infeliz: “Pode um indivíduo pertencer a duas espécies?”

    Esse título iludia o leitor inteligente, induzindo-o a 2 erros: a acreditar que um indivíduo possa pertencer a duas espécies, e que o conceito de ring species seja consistente.

    Para os biólogos, uma definição de espécie que permitisse que um indivíduo pertencesse a duas espécies distintas seria inaceitável, de modo que a pergunta explicitada no título não está em questão. O argumento apresentado no texto, na forma de uma demonstração por absurdo, explicita exatamente esse problema: a contradição entre as premissas de uma “ring species” e o pressuposto de que cada indivíduo não pode pertencer a duas espécies distintas.

    Por essa razão, pedi que o título fosse revertido ao original.

  • quanto terminei o texto,

    quanto terminei o texto, fiquei pensando a mesma coisa que o autor: nao havia nada de um indíviduo de duas espécies. Mas muito interessante. Na minha ignorancia, continuo pensando entao como era possível que se reproduzissem juntos o homo sapiens e o neanthertal se sao de espécies diferentes...?

  • Transitividade

    O argumento sumamente banal apresentado acima, explicita a transitividade do conceito de espécie. A consequência mais relevante do argumento consiste em expor a necessidade de reformulação do conceito biológico de espécie (BSC, em inglês), o mais utilizado pelos biólogos. A característica mais interessante do artigo, creio, é o contraste entre sua trivialidade e sua não aceitação, que bem mereceria estudos epistemológicos.

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