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A cidade dos (quase) invisíveis

Segundo dados do Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas, publicado em 2003, o século XXI ruma para a generalização das favelas no mundo urbano. The Challenge of Slums [O desafio das favelas] diz ainda que a pobreza urbana se tornaria “o problema mais importante e politicamente explosivo do século”.

 

Na cidade de São Paulo, em 1973, 1,2% da população do município vivia em favelas. Já em 1993, esse número havia subido para 19,8%, e na mesma década o crescimento dessa população era estimado em 16,4% ao ano.

 

 

A história de Los Angeles mostra a ligação entre arquitetura, urbanismo e a conformação do Estado no país, nos anos de Ronald Reagan e George Bush. O exemplo do investimento estatal em segurança e o consequente esvaziamento e destruição dos espaços públicos aparece no termo “pessoa de rua”: “Para reduzir o contato com os intocáveis, a reincorporação urbana converteu ruas de pedestres, antes vitais, em canais de tráfego e transformou parques públicos em receptáculos temporários para os sem-teto e miseráveis” (escreveu Mike Davis). A cidade também promoveu a “contenção” – termo oficial – dos sem-teto num submundo ao longo da rua 50 a leste da Broadway, transformando sistematicamente o bairro numa favela a céu aberto. A região tornou-se possivelmente uma das mais perigosas do mundo, habitada por “maníacos de canivete” e “perseguidores noturnos”: emergia o consumo de crack, nos anos 80, elevando a taxa de homicídio na cidade.

 

O exemplo da cidade de Los Angeles é ainda mais emblemático. O aumento vertiginoso das favelas periféricas na cidade de São Paulo se deu no início da década de 80, portanto, na mesma época. Antes disso, no centro da cidade paulista, de antigos casarões herdados por famílias ricas originaram-se cortiços onde pessoas mais pobres viviam em quartos alugados. Entretanto, já no final dos anos 80, a capital paulista assistia ao surgimento, tal como na Califórnia, da “era do crack”. Isso só não aconteceu como na cidade estadunidense: não foram nas periferias pobres que os usuários de crack se instalaram, ou foram confinados. Foi o mesmo centro da cidade brasileira quem viu a formação da região que até os dias de hoje é conhecida como “Cracolândia”, onde circulam pessoas de muitas regiões, de muitas classes sociais. Mas77% dos frequentadores da cracolândia moram nas ruas e 20% estão nesta situação há mais de dez anos e, talvez, a maior parte desta população seja composta por usuários de droga, como a cola e o crack.

 

Em entrevista para uma revista de São Francisco, na década de 80, Harry Edwards afirmava a transformação pela qual L.A. passou, social e politicamente. Edwards, que fora organizador de protestos do Poder Negro durante os jogos olímpicos de 1968, que também havia sido ministro da propaganda do Partido dos Pantera Negras, era então professor de Sociologia da Universidade da Califórnia, quando, enfim, duvidava de outra atitude que não fosse a remoção daquela juventude, de meninos e meninas das ruas da cidade. À pergunta sobre como “recuperar” um menino que vende crack nas ruas, ele diz não existir possibilidade. Evidentemente, Edwards não era um terapeuta, ou mesmo um assistente social, para responder a questão, no entanto, não deixa de ser significativa a afirmação que questiona a própria condição de humanidade de usuários de crack, também “pessoas de rua” muitas vezes, ainda que nem sempre. De qualquer maneira, como “recuperar”, ou “reinserir” socialmente essas pessoas?

 

Meninos e meninas também em situação de rua em São Paulo, muitas vezes, circulam em locais diversificados, por instituições prisionais e de assistência social, entre idas e vindas de sua residência de origem e para a rua novamente. Adquirir, manipular, articular recursos de sobrevivência, como praticar pequenos furtos, é uma forma de se comunicar e se posicionar frente à cidade e aos personagens desta, como a Polícia Militar, órgãos governamentais, fundações de assistência e demais cidadãos (como escreveu Maria Filomena Gregori). Assim tem vivido homens, mulheres, jovens e crianças que, às vezes, também são usuários de crack. Ao circular constante e diariamente, ainda, eles não estabelecem relações permanentes, tampouco se fixam em algum sítio durante muito tempo. Falamos de uma forma de estabelecer relação com as pessoas muito diferente da qual nós estamos habituados.

 

Desde o início deste mês, contudo, os governos municipal e estadual, em ação conjunta mal planejada – conforme o Ministério Público Paulista, e executada precipitadamente pela Polícia Militar, colocam em prática a “Ação Integrada Centro Legal“, especificamente na “Cracolândia”. Pelas declarações públicas, o primeiro intuito da Ação é “dispersar” usuários e combater o tráfico. Depois desta primeira fase da operação concluída, entrariam agentes de saúde, assistentes sociais e agentes comunitários para procurar os usuários da região e levá-los a umcentro de tratamento, bem como a outras unidades de saúde já existentes, onde seriam internados. Por fim, nesta última etapa, começaria a recuperação destes usuários.



(Foto: Nilton Fukuda, Agência Estado)



Difícil acreditar nesta ação governamental, justamente porque se a lógica que marca a relação daquelas pessoas no centro, na Cracolândia, é da circulação contínua, algo que os faz “dispersar” parece apenas reforçar a condição em que eles se encontram. Assistentes sociais, terapeutas, profissionais de saúde pública tem repetido que o trabalho de recuperação daqueles sujeitos, nas ruas, dependentes químicos, leva anos. E muitos trabalham naquela região há mais de dez anos, acompanham as trajetórias de muitos ali, sabem o nome, se tem família e quais os motivos que os levaram para aquela situação. Esses profissionais tem relações pessoais, tentam criar algum tipo de vínculo afetivo com aquelas pessoas. Agora, a Polícia Militar chegou com a primeira etapa da Ação para “dispersar” todos. Utilizando balas de borracha, bombas de efeito moral, o trabalho de anos pode ter se perdido.

 

A “Cracolândia” é uma favela que não está na periferia. Sem barracos, muitos ali se abrigam em edifícios abandonados, ou ficam pelas calçadas. E aqueles que ali se encontram não são tratados como cidadãos. Todos pareciam não existir, ou somente ganharam existência na medida em que não devem estar ali. Homens e mulheres que trabalham fazendo “bicos”, que estão desempregados, grávidas, senhoras a procura de filhos e netos perdidos, crianças sem famílias, ex-presidiários, pequenos traficantes, vítimas de violência familiar, dependentes químicos, enfim, são muitos problemas sociais condensados num único espaço. Aquelas pessoas estão expostas, diariamente, há mais de vinte anos, e não vimos, não quisemos, preferimos não ver.

 

Ao lado disso, temos ignorado outro problema crescente. Todas as vezes em que se tentou discutir publicamente os inúmeros imóveis abandonados e vazios do centro da cidade de São Paulo, a mesma dificuldade que se enfrenta ao pronunciar a expressão “Reforma Agrária” assola ouvidos. Os movimentos sociais por moradia continuam sendo tratados como invasores e delinquentes. Assim como sua irmã do campo, a “Reforma Urbana” passa longe do imaginário da política brasileira.

 

Pobreza e dependência química tem andado junto no centro de São Paulo, e não é possível ignorar que aquela região da “Cracolândia” está inserida num processo de “revitalização” urbana cujo sentido aponta, em especial, para a retirada das pessoas miseráveis da região. Dispersar, retirar, expulsar, os verbos não mudam a situação, enquanto aquelas pessoas não tiverem possibilidade de deixar a realidade que enfrentam, voltarão, continuarão incomodando, circulando, e eles são milhares.


Ver
Mike Davis. Cidade de Quartzo. São Paulo: Editora Página, 1993.
_________. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

Maria Filomena Gregori. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

originalmente publicado em http://www.misturaindigesta.com.br/
Redação

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