Direito à moradia versus direito à casa própria, por Fernando Nogueira Costa

Enviado por Pedro Penido dos Anjos

Direito à Moradia versus Direito à Casa Própria

Por Fernando Nogueira Costa

Do Cidadania & Cultura

A “casa própria”, em geral, é a maior riqueza das famílias. Seu valor-de-uso ultrapassa muito o seu valor-de-troca. O valor-de-mercado poderá cair, até mesmo pela depreciação ao longo do tempo, porém, ter um teto, um abrigo, um refúgio em todos os momentos, inclusive na desesperação do desemprego, tranquiliza seus residentes que não poderiam pagar um aluguel.

A esquerda, influenciada pela formação marxista, tende a condenar a propriedade privada, contrapondo-a à “propriedade coletiva dos meios de produção”. Ledo engano.

Primeiro, os meios de produção podem, em parte, ser estatais sem nenhuma incompatibilidade com a propriedade das residências pelos próprios moradores.

Segundo, as experiências de ocupação coletiva de residências particulares germinaram o ovo-da-serpente totalitária.

Por fim, a conquista popular ao direito à propriedade, historicamente, foi uma vitória da cidadania, isto é, dos cidadãos pobres contra a aristocracia fundiária. A emigração dos puritanos e demais pioneiros para as colônias britânicas, no século XVII, se deu pela motivação de conquista de terras usadas pelos nativos – cerca de 1/3 dos habitantes do mundo na ocasião – como território de caça e coleta de alimentos. Foram dizimados por “armas, germes e aço”.

A Guerra da Independência dos Estado Unidos explodiu, em 1775, não só pela insurgência contra a maior cobrança de taxas e tributos pela Coroa britânica sem a representação parlamentar adequada. Antes tinha sido concedida relativa autonomia aos colonos, devido à Guerra Civil inglesa, durante metade do século anterior (1640-1688), que levou à transformação da Monarquia Absolutista em Constitucionalista ou Parlamentarista.

Outra grande motivação dos insurgentes foi a conquista de terras de índios aliados aos ingleses contra os franceses que possuíam o Território da Luisiana. Então, na América do Norte, a posse de terras, tornando-as produtivas, pelo usucapião, foi uma vitória contra a nobreza (e igreja) fundiária que dominava a Europa.

Por sua vez, na América do Sul, as terras foram concedidas aos fidalgos (“filhos-de-algo”) das Cortes ibéricas. Os “amigos do rei” ganharam o direito de explorar latifúndios e nativos escravizados, saqueando desde logo , na virada do século XV para o XVI, as riquezas líquidas propiciadas pelo ouro e prata dos Impérios Asteca e Inca. Mais adiante, no século XVIII, também os portugueses pilharam o ouro das Minas Gerais.

A “arma biológica”, também no caso da futura América Latina, foi a causa maior do genocídio. A maioria dos nativos morreu devido às doenças epidêmicas levadas por aqueles conquistadores europeus. Eles já possuíam anticorpos contra as moléstias transmitidas por seus animais. Tinham passado pela seleção natural propiciada por milênios de convivência com animais domésticos.

Embora houvesse também grandes “plantations” escravistas no Sul dos EUA, até a Guerra Civil (1860-1865), a promessa de posse de terras a Oeste serviu para o Norte dissuadir da luta vários potenciais combatentes.

Aqui, no Brasil, a Lei das Terras exigia a compra e o registro em Cartório, com pagamento de taxas ao Imperador. Pela inexistência de terras devolutas de domínio público, o País não atraiu tantos imigrantes quanto os Estados Unidos.

Outra lição histórica veio de lá: “a democracia da propriedade”. Ficou conhecida dessa forma a política habitacional implantada por Franklin D. Roosevelt. A democracia da posse do lar foi construída na América como reação à ameaça de revolução comunista, inspirada pela revolução soviética, ocorrida uma década e meia antes dos efeitos calamitosos da Grande Depressão de 1929.

Os conservadores como Margareth Thatcher ou republicanos com George W. Bush buscaram dar uma “solução de mercado” para um problema que é de natureza social e política. A primeira privatizou os imóveis antes destinados à locação social, trazendo os beneficiários – antes trabalhistas – para a base eleitoral dos conservadores. O segundo provocou a “crise do subprime”…

Os partidos de origem trabalhista e os democratas norte-americanos dão outra solução com implementação de política habitacional em que usa recursos públicos e/ou dos contribuintes. Fazem uma socialização dos benefícios – urbanização e transformação das favelas em bairros populares – com o compartilhamento social do ônus.

Na Tropicalização Antropofágica Miscigenada brasileira, a originalidade é aperfeiçoar ideias vindas de fora. O PAR (Programa de Arrendamento Residencial) é um leasing residencial com opção de aquisição após quinze anos de pagamento do arrendamento sem nenhuma inadimplência. Inspirado no modelo francês de locação social, a solução criativa brasileira resolveu o problema que o Estado francês vive por ter se convertido na maior imobiliária do país.

A “realização do sonho da casa própria” tornou-se o lugar-comum que designa a democracia da posse imobiliária. A propriedade de maior valor das famílias é a residência. Não seria melhor a locação social, que atenderia o direito civil àmoradia, distinguindo esta da propriedade da residência?

Segundo a PNAD, 45,8 milhões (74,8%) residências eram domicílios próprios dos residentes. Portanto, criou-se uma tradição no imaginário social que é “natural” o clichê: a realização do “sonho da casa-própria”. Muitos o enxergam como um direito natural em contrapartida a um dever estatal.

No entanto, na nossa “jovem democracia”, as pessoas adquiriram muita consciência dos direitos básicos de todos os seres humanos, mas pouca dos deveres dos cidadãos. Entre os direitos civis e políticos estão os direitos à vida, à propriedade, liberdades de pensamento, de expressão, de crença, igualdade formal, ou seja, de todos perante a lei, direitos à nacionalidade, de participar do governo do seu Estado, podendo votar e ser votado, fundamentados no valor daliberdade. Há também direitos difusos e coletivos, por exemplo, direito à paz, direito ao progresso, autodeterminação dos povos, direito ambiental, direitos do consumidor, inclusão digital, fundamentados no valor da fraternidade. Os direitos econômicos, sociais e culturais são representados por direitos ao trabalho, à educação, à saúde, à previdência social, à distribuição de renda, à moradia, entre outros, fundamentados no valor da igualdade de oportunidades.

Consta, portanto, o direito à moradia e não o direito à propriedade imobiliária da residência. Para tanto, o cidadão-contribuinte tem de pagar, ou seja, não sonegar os impostos.

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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  • Muito interessante e, nesse

    Muito interessante e, nesse sentido, é importante observar que os mais pobres não carregam consigo a idelogia da casa própria. Quantas vezes o Estado entrega casas  para a população de baixa ou nenhuma renda e no dia seguinte o imóvel é vendido? E quantas vezes ficamos sem entender a pouca importância que tem para essa população ser ou não dono de uma casa? Eles querem morar, não exatamente possuir; não pensam em deixar herança para filhos, nem em assegurar o futuro dos filhos, como fazem as classes mais abastadas. 

    Não estou fazendo apologia ao desinteresse dos pobres, pois sei que esse desinteresse tem fundamento na realidade social e econômica do páis. Eles não sonham com casa própria porque até o direito de sonhar lhes foi tirado. Mesmo assim, pode ser uma ideia a ser alimentada essa do aluguel social, pois garante o mais importante, que é dignidade de vida. Propriedade não confere dignidade, pelo menos não deveria conferir.

    • aluguel social? 
      mais um

      aluguel social? 

      mais um programa para o infeliz ficar dependente e achar que se nao votar no partido x ele perde o beneficio né Arthemisia?

      rs

      Incrivel...

      A casa propria é um direito do trabalhador e ele deve rcebe-la querendo ou nao, e claro deve haver fiscalização para que a pessoa que venda um imovel recebido dessa forma não tenha acesso à outro.

      E tambem nao vai invadir lugar nenhum, pois ira arcar com as consequencias de seus atos e vai pagar aluguel na cidade e se nao conseguir vai pagar aluguel barato á 150 km de onde vivia.

      pq para uma sociedade ser viavel as pessoas devem ter direitos e DEVERES tambem.

      O sujeito recebe uma casa para morar, vende, e vai degradar outro bairro montando barraco?

      Negativo.

      Barraco e favela é algo insalubre e atenta contra as condiçoes minimas de um ser humano.

      Devem ser erradicadios e o Brasil tem dinheiro para dar uma casa para quem seja miseravel...

    • alias pode-se criar um

      alias pode-se criar um mecanismo que use algo de sua ideia.

      A posse do imovel sera do governo que se compromete em deixa-lo com o titular e seus descendentes ( caso compravada necessidade do uso )  exceto em caso de uso comercial do mesmo ou venda.

      desse modo o governo coloca o espertinho de volta no imovel e pode haver alguma punição administrativa ( nao criminal para ele aprender a ser gente resposnavel...

    • Nossa heim?Quanta falta de

      Nossa heim?

      Quanta falta de respeito com os NEGROS do pais por parte do governo " tão comprometido " em defender negros da elite branca...rs 

      na verdade tirando esse povo de onde vivem, o governo dito progressista força eles a viver de bolsa alguma coisa e por mais ironico que pareca engrossa seu curral eleitoral

      Porque eles saindo do mato muito possivelmente vao procurar ajuda e ai aparece as Ongs chapa branca dizendo que são negros e o governo progressistas esta com eles, que vão receber cota, bolsa etc etc etc

      enfim aquela coisa de sempre né?

      afinal s/ miseria não da para criar publico à ser tutelado e viver disso eleitoralmente certo? rs

  • A unica razao para que haja

    A unica razao para que haja favelas é o completa falta de VERGONHA NA CARA dos governos DE TODOS ( leia-se PT JUNTO ) os partidos.

    Dar casa propria a custo zero NÃO É IMPOSSIVEL , só de dinheiro gasto para manter os EXCESSOS do senado , do congresso, e das cameras legislativas desse pais,  ou mesmo para financiar projetos que em termos de prioridade poderiam esperar dava para zerar o deficit habitacional no médio prazo começando agora imagino.

    Na região norte ou nordeste há milhares de gente morando em palafitas, no Rio existem predios abandonados sem banheiro sendo habitado por milhares de familias , e o governo de lá preocupado com as Olimpiadas.

    E necessario INTERESSE  politico para FISCALIZAR as obras ( pois o minha casa minha vida ) ja tem casa bichda completamente incompativel para moradia ) o que deixa claro que os " acertos " permanecem, o governo diz que constroi casa, deixa a grana com os "amigos de sempre " que por sua vez contrata os "empreiteros de sempre " que fazem o serviço ' nojeto de sempre "

    Fora que não ha um cadastro nacional que permita identificar o sujeito que receba uma moradia do estado e venda ela para voltar para a favela.

    Enfim FALTA DE VONTADE politica de acabar com o problema mesmo...

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