A memória consiste em um processo de seleção de acontecimentos, ideias e personagens do passado. Relega tantos outros às sombras do esquecimento. Sempre apoiado nas aspirações e nas preocupações do presente, bem como de olho no futuro, o processo de construção da memória é marcado por versões do passado, não raro conflituosas. Nesse sentido, o ex-presidente Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) representa um dos ícones mais contraditórios da memória política brasileira. Nesse mês de agosto completam-se sessenta anos da sua trágica morte, o que provavelmente abrirá possibilidades para a proliferação de interpretações sobre o legado e o grau de importância de Vargas na história brasileira.
É necessário frisar que a memória construída nas últimas décadas não foi muito favorável a Vargas. Isso se deve, sobretudo, ao influxo da hegemonia cultural, econômica e política de São Paulo. A teoria sociológica uspiana do “populismo” – cujos estudos, especialmente desenvolvidos por Octavio Ianni e Francisco Weffort, influenciaram gerações – anulou as especificidades da corrente política trabalhista de Vargas, rebatizando o trabalhismo como “populismo”. Diluiu o trabalhismo em um oceano de projetos políticos diferentes e, mesmo, adversários. Demagogia, manipulação e autoritarismo foram alguns dos símbolos negativos decorrentes dessa perspectiva teórica que, até hoje, tendem a ficar associadas a imagem do ex-presidente. Mobilizando tais símbolos na análise exclusivamente dedicada à seara econômica, Bresser Pereira, na década de 1990, igualmente ofereceu a sua cota de contribuição para a reiteração do estigma, concebendo o “populismo” como uma política econômica atrasada. Em sua interpretação, isso equivalia a um problemático papel social e economicamente ativo do Estado.
Expressando as habituais repercussões dos estudos acadêmicos nos meios políticos, não é gratuito que os dois principais partidos políticos do país – PT e PSDB –, nascidos e forjados em meio ao caldeirão cultural paulista, tenham renitentemente operado com a categoria “populismo” como relevante traço de construção das suas identidades. O PT firmou a sua imagem em oposição ao “populismo”: o varguismo, o trabalhismo – travestidos em meros “engodos” para os trabalhadores – e até mesmo o comunismo, “mergulhado” no passado “populista” sob a condição de “sócio”. Pretendia-se o “novo” em oposição ao “velho populismo”. Não raro, filhotes partidários nascidos do ventre petista, particularmente o PSOL e o PSTU, manifestam a mesma memória negativa sobre Vargas. O PT, ungido no chão das fábricas multinacionais instaladas em São Paulo, como sublinha Gilberto Vasconcellos, realmente não poderia compartilhar do nacionalismo do velho trabalhismo. PSOL e PSTU, com raízes sociais distintas, seguem a velha cantilena petista. Quase por inércia. Em relação ao PSDB, a sua pretensa retórica modernizante – marcada pela submissão sem peias do país à economia internacional globalizada – concebia e concebe o nacionalismo econômico (“populista”) e os direitos sociais como entraves ao “desenvolvimento econômico” e à “modernidade”. Uma alegada modernidade que expressa o anseio maior pelo incremento da acumulação capitalista, uma aspiração geralmente subterrânea na retórica tucana. No discurso de posse como presidente da República, em 1995, Fernando Henrique Cardoso, todo-pimpão, não deixou de manifestar o seu intuito em “acabar com a era Vargas”. Anos de elevado desemprego, festança neoliberal e privatismo econômico, eis os conhecidos significados do esforço tucano em “acabar com a era Vargas”.
Contudo, múltiplos estudos historiográficos recentes têm mobilizado novas fontes documentais e apresentado perspectivas distintas: a busca pela identificação do potencial progressista e democrático do velho trabalhismo pré-1964 e a análise da conflituosa correlação de forças políticas em que se inseriram os projetos e as iniciativas levadas a cabo por Getúlio Vargas. Reflexões originalmente feitas pelos historiadores Miguel Bodea, Ângela de Castro Gomes, Lucília de Almeida Neves Delgado e Jorge Ferreira, a partir da década de 1980. Nos últimos anos, intelectuais com prestigiosa inserção no debate público, como Francisco de Oliveira, em não poucas oportunidades, tem chamado a atenção para o positivo legado de Vargas e as dificuldades que as esquerdas revelam em lidar com o personagem. Na esteira de Francisco de Oliveira, mas acentuando as tintas, Carlos Lessa compreende Getúlio Vargas como o “avatar do Brasil”. Uma industrialização apoiada na intervenção do Estado e a busca pela integração das classes populares e trabalhadoras ao mundo da cidadania, via direitos trabalhistas e capacidade de interlocução política, consistem nas razões destacadas por Lessa.
Em meio a essa controvérsia, uma coisa é certa: a dramática Carta-Testamento deixada por Vargas (um dos documentos políticos mais importantes da história brasileira), com o seu saliente apelo popular e antiimperialista, não possui qualquer influência entre os setores políticos e intelectuais do Brasil de hoje. De certo modo, não seria demasiado argumentar que se trata de um êxito alcançado pela ditadura civil-militar instalada em 1964, que teve no trabalhismo de Jango, Brizola, Almino Affonso e Sérgio Magalhães, o trabalhismo herdado de Vargas, o alvo principal. Os segmentos intelectuais e as forças políticas sintonizadas com o liberalismo econômico e com o elitismo político e social guardam profundas afinidades com um antigo antagonista do getulismo: o moralismo conservador da UDN. Desprezam, pois, a velha Carta getulista. Entre a intelectualidade e os grupos políticos afinados com as esquerdas, um marxismo desencarnado e abstrato tende a dar o tom, relegando ao esquecimento aquela expressão documental da antiga esquerda trabalhista. Aqui e acolá, em diferentes paragens políticas e intelectuais, a cartilha keynesiana aparece no cenário.
Entretanto, na contramão desse fenômeno brasileiro, vemos na orientação política dos movimentos esquerdistas de alguns países sul-americanos, folgadamente, princípios e ideias que convergem, em boa medida, com o conteúdo da Carta-Testamento. Dessa forma, ficam as indagações: o velho getulismo realmente não tem mais nada a dizer ao nosso país? Trata-se de uma memória que deve permanecer solidificada no passado nacional? Ou estamos nos esquecendo da nossa própria história?
Por Roberto Bitencourt da Silva
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Muito bom. Sem dúvida, uma
Muito bom. Sem dúvida, uma das consequências danosas da ditadura de 1964 ao país foi o distanciamento do Brasil das ideias de Vargas. Jango e Brizola foram representantes dessas ideias e por isso perseguidos. Este incansavelmente pela mídia. Aquele por mídia, empresários, igreja e até a Embaixada dos EUA.
São Paulo tem infelizmente um papel importante na difusão de Vargas como algo atrasado. E PT e PSDB foram cotaminados por isso.
Getúlio Vargas, o maior dos
Getúlio Vargas, o maior dos presidentes da nação. O brasileiro que deu cara e corpo ao Brasil que hoje somos. Reconheço que caí na tentação da leitura hegemônica de um Getúlio populista, caudilho, etc... É tempo de resgatar Vargas, é tempo de fazer mostrar a verdadeira identidade do "pai do povo brasileiro". E foi o povo que demostrou seu entendimento de que ele foi o maior...
Vargas
Vargas é atual; tudo o que ele criou para os trabalhadores continua aí, ainda; é história; a história é o passado sempre presente; o futuro pode se transformar em presente, ou não,; transformando-se em presente, é efêmero, pois dura apenas um dia; no outro dia já é passado; vivemos o passado no presente todos os dias.