Indo além do caso Lula, porque o jogo midiático é fundamental, por Grazielle Albuquerque

Por: Grazielle Albuquerque
No início do mês, o polêmico caso “Lula preso/Lula solto” demonstrou indiscutivelmente que, no Brasil, as fortes emoções voltaram com força ao campo da política. O assunto já é quase batido e rendeu ótimas análises que, vistas em um plano geral, tinham algo em comum: pensavam na estratégia midiática ao redor do episódio. Inclusive, parece consenso que, nessa disputa, a Operação Lava Jato saiu perdendo em relação à isca plantada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Seria difícil imaginar que Lula realmente conseguisse, ao menos por algumas horas, deixar a carceragem da Polícia Federal em Curitiba, onde está preso provisoriamente pelo processo relativo ao triplex do Guarujá. Contudo, o manejo feito pelo PT conseguiu que, em um pacato domingo, pelo menos três magistrados se revezassem em um esforço incomum para evitar que uma decisão, cujo destino certamente seria a revogação no dia seguinte, sequer chegasse a ser cumprida.
Pode ser enfadonho resumir esse plot twist da conjuntura nacional, mas segue aqui um pequeno resumo só para que a análise não prescinda de uma espécie de lide. No domingo, dia 8 de julho, às 9h da manhã, o desembargador plantonista do Tribunal Regional Federal da 4a. Região (TRF-4), Rogério Favreto, acatou um pedido de habeas corpus (HC) protocolado pelos deputados do PT Wadih Damous (RJ), Paulo Pimenta (SP) e Paulo Teixeira (SP) para a soltura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. O motivo alegado no novo HC diz respeito ao exercício dos direitos políticos do ex-presidente. Isso se deve ao fato de Lula (ainda) não ter sido considerado inelegível pela Justiça Eleitoral e ocupar o primeiro lugar nas pesquisas para presidente nesta fase da pré-campanha.
O fato é que, desde que acatado o HC, seguiu-se uma espécie de montanha-russa judicial que em poucos minutos mudava a situação de Lula, entre preso e solto, e as expectativas em torno desse fato. Por volta do meio-dia, a decisão de Favreto foi contestada em despacho pelo juiz Sérgio Moro. Pouco depois, descobriu-se que Moro estava de férias.
Nesse ínterim, as perguntas sobre a quem se destinava a ordem de soltura e a contestação foram só o começo de uma série de reviravoltas processuais que tomaram o domingo. A professora da GV de São Paulo Eloísa Machado fez uma ótima análise da questão processual para o Nexo. Fato é que, até o final do domingo, Favreto tinha expedido três despachos com ordens de soltura destinadas a Lula. Uma delas foi revogada pelo relator do processo contra Lula no TRF-4, o desembargador João Pedro Gebran Neto, que estava de folga. Depois, Favreto reafirmou a decisão. O Ministério Público arguiu conflito positivo de competência e, ao fim do dia, atuando como uma instância recursal, o presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores, acabou por decidir: Lula continuaria preso.
Em uma entrevista ao Jota, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ex-corregedor-geral de Justiça, Gilson Dipp, classificou o episódio com as seguintes palavras: “A cena mais patética que eu jamais vi na minha vida em todo o Judiciário”. É usual no jornalismo se usar uma citação mais forte para encabeçar uma matéria, ainda mais no caso de uma entrevista. Contudo, a frase aqui é pinçada muito mais por representar uma sensação do público geral do que uma consideração particular. A maioria das pessoas que acompanhavam o vaievém processual se sentia vendo um jogo voluntarista que pouco tem a ver com a ideia clássica da deusa Themis serena, de olhos fechados. É este precisamente o ponto de análise: em um processo em que o Judiciário aparece como ator político e, ressalte-se, aparece tão exacerbadamente, é impossível que não haja uma cobrança pública nas mesmas dimensões. Na entrevista ao Jota, Dipp também fala: “Sem apontar qualquer culpa de ninguém, mas foi um processo altamente politizado. E agora a gente sabe quem é quem”.
Visto assim, o episódio do domingo, 8 de julho, é apenas mais um em que a Justiça se comporta como antagônica (ou favorável, a depender do magistrado) a um réu, e não como fiel da balança. Independentemente do “time” para o qual se torça, isso tem pelo menos três consequências sérias: 1 – o que colocar no lugar do mito do juiz imparcial?; 2 – como é possível ter previsibilidade jurídica com tamanho ativismo?; e 3 – não é possível fazer nada diante de tanta bagunça? São perguntas que teriam um peso se fossem feitas de forma institucional, veladamente, dentro dos salões e dos ofícios. Há, contudo, uma “novidade” que muda os resultados. Essas são perguntas feitas na mídia, nas redes sociais e com ampla abrangência na agenda pública. Vista num plano menor, foi exatamente por isso que a estratégia do PT deu certo. Ao conseguir uma decisão que pendesse para o seu lado, o que o partido expôs foi um grande esforço organizado do lado oposto. Nesse sentido, o episódio do dia 8 é cumulativo de uma série em que o Judiciário aparece com esse acentuado viés político, antagonizando-se ao réu.
Questionamentos processuais
Um indicativo de que a questão vai além do caso Lula é que, a reboque do seu personagem principal, o que se questiona são os próprios procedimentos da Justiça. Vale perguntar: como Moro, estando de férias, poderia contestar formalmente uma ordem de uma instância superior? Esse papel não seria do Ministério Público, o titular da ação penal? Por que a Polícia Federal e a Vara de Execuções não cumpriram a ordem de soltura de imediato? O magistrado de plantão pode ter suas decisões revogadas por seus pares durante o tempo em que, pelo calendário do Tribunal, tem a competência para oficiar nos processos? Tais questionamentos até parecem um estudo de caso feito nas aulas desses cursinhos preparatórios para as carreiras de Estado. Mas, na realidade, eram as pautas de política que tomaram aquele fim de semana na imprensa e nas redes sociais.
O ponto de destaque nisso é que o distanciamento técnico que sempre transformou a Justiça em algo inacessível parece ruir quando, além das preferências políticas, o que se questiona são os instrumentais processuais. Indo além: por que eles são usados de uma forma e não de outra? Quando se entra na faculdade de Direito, é comum se ouvir uma anedota sobre um advogado inescrupuloso que, diante de um cliente aparentemente pobre, afirma haver na estante do escritório metade dos livros com argumentos contra o seu pedido. Ao ver o montante de dinheiro que o cliente havia guardado para os honorários, logo o advogado muda de ideia e afirma que a outra metade da estante está repleta de livros com argumentos exatamente opostos, que lhe dão razão no caso. A história é contada como um chiste, para terror dos professores de hermenêutica e lógica jurídica. Não nos convém entrar nessa seara, mas sim mostrar, ainda que superficialmente, que, ao se ocupar tão fortemente um papel político, um dos elementos desnudos e questionados é o das regras do jogo que supostamente confere imparcialidade ao processo judicial.
Pensando em episódios seriados, a frase do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio, “que fique registrado nos anais do STF: venceu a estratégia”, é talvez a mais representativa desse processo. A fala do ministro, proferida no plenário do Tribunal, no dia 4 de abril, quando se julgava o habeas corpus de Lula, expõe não são só as preferências, mas a “flexibilidade” das regras.
Com isso, é revelado algo intrínseco ao processo judicial. Revelado e, portanto, passível de questionamento de todas as ordens. Com traços positivos e negativos, esse parece ser um caminho sem volta. Por isso, em certa medida, o caso Lula representa algo maior. O julgamento da cassação da chapa Dilma/Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e os embates protagonizados e televisionados ali são outro exemplo. É possível citar diversos para ratificar os dois pontos levantados: há um Judiciário que mostra suas preferências políticas e também há um Judiciário que revela a maleabilidade de suas regras.
Em relação às preferências políticas, há ainda outras questões: Favreto havia sido filiado ao PT e tem fotos ao lado de Lula espalhadas nas redes sociais. A divulgação dessa informação aumentou a indignação de uns, enquanto outros postavam fotos de Moro ao lado do senador Aécio Neves (PSDB-MG) e do ex-prefeito João Dória (PSDB-SP). Também tomaram as redes fotos do ministro do STF Alexandre de Moraes junto a diversos políticos do PSDB.
Nessa argumentação, todas essas questões são levantadas menos para analisar o caso de Lula em si e mais para mostrar a estratégia do PT e o que ela revela. Essa é uma reação do campo político que vem do partido mais atacado na conjuntura atual, mas que não se restringe a ele. Em diversos textos, inclusive aqui nessa coluna, já analisei aspectos de um Judiciário que se expõe. A diferença, nesse caso, é que são os tradicionais atores políticos a chamar a Justiça para o jogo midiático. Em tom de troça, é quase como se os veteranos dissessem “desceu no play, vai ter que brincar”.
A política ocorre na agenda pública
O comportamento político do Judiciário nos leva a inúmeros caminhos, em especial aos trilhados pela Ciência Política com o modelo atitudinal, estratégico…. Esse é um trajeto à parte. Ocorre que, nesse caso, nosso ângulo de observação, em especial no que toca às eleições de 2018, é mostrar que, sejam as preferências ou seja a flexibilidade das regras, ao se expor esses elementos na agenda pública, o jogo muda de configuração, já que este é o espaço por excelência onde a política contemporânea ocorre.
Quando Ivy Lee deixa o Jornalismo, em 1906, para fundar aquele que é tido como o primeiro escritório de relações públicas do mundo, em Nova Iorque, existe uma mudança de tempo representada nesse gesto. O espaço de atuação política deixa de ser o dos grandes salões da sociedade para ser a imprensa. Lee tinha como missão transformar a imagem do magnata do petróleo John Rockefeller de monopolista e explorador da mão de obra operária a grande impulsionador do desenvolvimento americano. Isso se daria por meio de matérias jornalísticas. Os caminhos que as relações públicas tomaram nos Estados Unidos e no Brasil são bem distintos. Contudo, o fenômeno da criação de uma imagem e das disputas via opinião pública é próprio da modernidade.
Se é comum pensarmos em contendas discursivas e deliberações públicas ao tratar de comunicação e eleições, no caso de um poder não eleito, como o Judiciário, a base deve ser outra. Contudo, há aqui um fato “novo”: quando o que aparece é uma Justiça política, os jogadores mais experientes vão levar o jogo para o espaço que lhe é costumeiro, usar as mesmas regras de uma Justiça ancorada na opinião pública e empurrar a disputa para esse cenário. Dito de forma direta, o PT usou a mídia e a repercussão pública como ferramenta do jogo. Mesmo sabendo que não ganharia a contenda jurídica, o partido sairia vitorioso ao expor como adversário aquele que deveria ter papel de árbitro.
Nesse movimento, é curiosa a pesquisa encomendada pelo jornal Estado de São Paulo ao Instituto Ipsos. Ela mostra que o eleitorado brasileiro, a partir de julho de 2017 até agora, vem avaliando Lula de maneira menos negativa, em uma curva inversa à do juiz Sérgio Moro. O cientista político Alberto Carlos Almeida comenta a pesquisa para o Poder 360 e, de todas as ilações que podem ser feitas, ficaremos com a básica: temos uma pesquisa de opinião pública que mede a avaliação de um político (o mais bem colocado nas pesquisas de intenção de voto até agora na pré-campanha) em comparação a um juiz. É difícil imaginar ilustração mais clara para o argumento de um Judiciário político de amparo midiático.
Esses dois lados, Moro versus Lula, podem parecer lugar-comum numa sociedade extremamente polarizada como a nossa. Mas, visto com calma, não é. É preciso tirar o foco dos personagens ao se observar esse fenômeno pela ótica de uma agenda de pesquisa mais perene. Lula e o PT, o que vale para outros partidos políticos e candidatos, são velhos conhecidos da opinião pública. Sabe-se o que esperar dos políticos, vota-se neles, há uma aposta feita e retirada, a depender dos resultados.
Na esteira de personagens e disputas políticas, a Justiça revela sua forma de funcionamento – o que tem aspectos muito positivos. Resta saber se ela está preparada para as cobranças que resultam desse movimento. É preciso ir além, e se perguntar quais os impactos disso na democracia brasileira e como esse embate pode gerar espaço para pretensas e fáceis soluções que desqualifiquem o campo político para o debate. Junto com a Justiça que expõe seus ossos, outros processos aparecem desnudos.
Grazielle Albuquerque é jornalista e doutoranda em Ciências Políticas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi researchfellow no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburg. É pesquisadora da área de Ciência Política, estuda Sistema de Justiça, em especial, sua interface com a mídia.
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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  • " Por que a Polícia Federal e

    " Por que a Polícia Federal e a Vara de Execuções não cumpriram a ordem de soltura de imediato?"

    Pincei essa frase porque acho que foi o que a rigor aconteceu de novidade no episódio. A atuação inviesada, fora da lei, do Moro e do TRF-4 já é rotina.

    O que fizeram difere do vazamanto da conversa da Dilma com Lula para a Globo? Um grampo ilegal na presidenta da república? Nos EUA, Moro estaria preso até hoje, e dependendo do estado, na fila da cadeira elétrica.

    Mas até agora não tinhamos visto uma insubordinação tão escancarada por parte da PF. Uma coisa é ofender petistas nas redes sociais. Vazar para o pig para prejudicar o PT e tal. Outra é recusar a cumprir ordem judicial. Isso não tinha acontecido até então.

    Daí respondo a pergunta acima com a unica constatação possível. A PF tomou o primeiro passo para se tornar uma milicia, cuja definição é exatamente essa. Força policial do estado que aje à margem da lei de acordo com interesses do grupo

  • a celeuma do domingo delirante mostra que juizes não precisam

    de auxílio moradia. Definitivamente por causa de Lula da Silva, ninguém dorme no ponto. Pra que moradia se mandam de onde estiverem?

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