Moro das lamentações: a tragédia do juiz que pensava ser um deus, por Salah H. Khaled Jr

do Justificando

Moro das lamentações: a tragédia do juiz que pensava ser um deus

Salah H. Khaled Jr

Feche os olhos e imagine por um instante que você detém os poderes de uma divindade. Você narra a partir de um ponto de vista privilegiado, que consegue discernir com clareza incomparável a complexidade da realidade e sua conexão com a normatividade. Suas decisões não fazem mais do que refletir os fatos de forma perfeita e acabada, sem qualquer nível de distorção: são simples meios de exteriorização de uma convicção que jamais conhece qualquer falibilidade. Essências são extraídas de coisas e pessoas com incomparável facilidade: realidade e alteridade se curvam diante de seu método de revelação da verdade.

Você é firme e obstinado em seu propósito. Enviado pelos céus e movido por energias extraídas do além, sempre mantém os olhos fixos no grande prêmio e jamais se desvia da trajetória inicialmente delineada. Para você, a magistratura é sacerdócio; uma profissão de fé conduzida pelo mais nobre dos propósitos: extirpar o mal do mundo, em nome do bem da sociedade.

Sua vida é cruzada. Seu ritual é uma prática continua de zelo pelo bem comum. Senhor de todas as certezas, lorde de todos os soldados, você faz do trabalho diário um empreendimento de enfrentamento constante contra o mal. Higienizar o país é seu destino e o triunfo, algo certo e inevitável. Palavra da salvação: toda honra e toda glória, agora e para sempre.

Você é objeto de louvor alheio. As pessoas ostentam seu nome em camisetas, adesivos e cartazes. Seu estandarte tremula de Norte a Sul do país: você é reconhecido como salvador e extrai energias de seus devotos. Obtém deles forças para intensificar ainda mais o combate contra o inimigo. Seu poder cresce a cada dia que passa. Ele faz de você uma divindade onipotente e, logo, capacitada para erradicar a maldade que aflora no mundo. Não é de se estranhar que você aprecie cada vez mais a atenção que lhe é dada. Opinião pública e opinião publicada parecem ter por você uma irrefreável paixão, absolutamente profunda e massivamente sedimentada. Você se sente tocado por ela e faz questão de manifestar seus sentimentos para todos que incansavelmente o bajulam. Nem por um instante sequer você considera que possa estar equivocado. Que alguém insinue que você atua como veículo para difusão de ódio é logicamente uma leviandade.

Mais do que um mero mortal, sua existência transcendeu o plano terreno: as regras aplicáveis aos demais não valem para você. Continuamente estimulado e jamais coibido, você saboreia a delícia do poder ilimitado que lhe é conferido. De fato, você acredita que um juiz pode voar: nem mesmo o céu é limite para a sua audácia. Sua vaidade atinge patamares gigantescos: nem mesmo a segurança de seus próprios devotos parece lhe importar. Você propositalmente desconsidera qualquer limite normativo ou ético que possa comprometer o fim que lhe é caro. Utiliza sem o menor pudor os meios que lhe são conferidos para divulgar a irrecusável verdade de sua palavra. Caso venham a ocorrer, danos colaterais não serão nada mais do que perdas aceitáveis para a consecução da meta perseguida. Sua onisciência não permite qualquer vazio. O interesse público lhe é transparente: não pode ser nada além de um reflexo de sua própria vontade, que, ao final, subjugou completamente a realidade.

E assim seria, se ele, o limite, não promovesse uma alucinada reviravolta no roteiro previamente estabelecido por sua santidade. De forma inesperada, uma vertigem democrática surge no horizonte para usurpar o frágil solo moral no qual assentava sua autoridade, destruída como castelo de cartas por um relâmpago de legalidade.

Sua onipotência não era mais que delírio e devaneio. Complexo de grandeza e abuso de autoridade. Possível prática de crime e flagrante ilegalidade. O destino parece ter lhe pregado uma terrível peça: suas razões não são mais do que pálidos reflexos de uma contaminada subjetividade. Vitimada pela própria arrogância, cai por terra a insustentável identificação com o bem da sociedade. Tragédia até então impensável. Quem dizia que falava por todos falava por si mesmo: refém da própria e indevidamente atribuída discricionariedade.

Resta o lamento dramático e a entrega narrativa da própria dignidade, corroída pelo esforço impossível de legitimar uma indefensável ilegalidade. Esgotada sua serventia, desvelada a humanidade, resta a você o papel de cordeiro: passível de ser sacrificado no altar do próprio autoritarismo, ainda que mostre incredulidade diante dessa possibilidade. Talvez a sorte seja generosa e você apenas caia na obscuridade. Lamento de um Moro, Moro das lamentações. Equivocado até o final, ainda lhe escapa a ideia de impessoalidade. A Tragédia de um Moro é a morte metafórica de uma pseudodivindade. Que ela descanse em paz. A democracia agradece.

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  • Belo texto  Salah, nosso

    Belo texto  Salah, nosso Gustave Flaubert.

    Pobre juiz, a vaidade, nada mais que vaidade.

  • Continua dando as cartas e,

    Continua dando as cartas e,  quando estiver por demais manjado, os irmãos Marinho o substituirão.

  • No meio do caminho de moro há uma DEMOCRACIA

    Nossa democracia é frágil, mas ainda há muitas pessoas que querem defende-la.

    O momento é díficil, mas temos que passar por ele e superar, e vamos! E devemos agradecer muito a força de Dilma que como mulher compreende a necessidade de abraçar essa luta pela nossa democracia! ela se transforma num grande exemplo e grande nome na história pelo que representa, A LUTA PELA NOSSA SOBERANIA!

    • Moro das lamentações

      Ana,

      suas reflexões sobre o artigo Moro das Lamentações são muito apropriadas e sérias. E o que mais me espanta nesse Moro é que ele não respeita nada, nem a Constituição. Fico pensando se o STF se acovardou ou se é conivente. A Presidenta Dilma é uma mulher forte, honesta e republicana, às vezes até republicana em excesso, talvez por se lembrar dos sofrimentos a que foi submetida pela Ditadura. Temos de resistir com ela a este golpe. Fico pensando: Quem será que outorga esse poder a Moro? Acho que o artigo do jornal Pravda, publicado no 24/7 é verdadeiro. Toda essa oposição à Dilma veio das passeatas de 2013 em que ela, de uma aprovação de 70% e sem que nada tivesse ocorrido, caiu para 30%. Esse golpe começou lá, e, segundo o jornal Pravada, veio de ordem de Obama, através da CIA, para derrubar Dilma, por causa do Pré-Sal e dos BRICS. Está correndo muito dinheiro verde nessa história. Não poemos deixar que ocorra outra Operação Condor" na América Latina. Dilma fica.

  • É o que dá acreditar no PiG!

    O Joaquim Barbosa vai ganhar um companheiro para Tuitar e falar dos bons tempos em que a Globo madava no País.

  • Muito bom!

    O texto é excelente,mas não creio que Moro esteja derrotado ou mesmo perto disso.Basta ver que a já tradicional operação das sextas feiras aconteceu de novo e dessa vez querem desenterrar o cadáver do Celso Daniel mais uma vez.

    • Mas aí é que esta,

      Mas aí é que esta, desenterrar um caso que já foi exaustivamente investigado e nada se achou que comprometesse o PT é um sinal inequívoco de desespero, coloca o juizeco no mesmo nível dos maniacos com teorias de conspiração que pululam na internet, aliás acho que ele vai ter que juntar esse tipo de material nos autos, o juizeco começou a saltar dos trilhos quando autorizou a condução coercitiva do presidente e agora ministro Lula, ao vazar a conversa privada da Presidenta com o Lula despirocou de vez, agora já esta na nova fase da operação Vaza Jato a do desespero total, nenhum profissional sério da PF, MP ou do Judiciário vai entrar nessa furada, se entrar se queima para sempre, somente o juizeco que esta atolado até o pescoço é que tem que gerar noticias para os seus patrões na Globo, sua única saída é manter uma eterna Lava Jato pois na hora que parar vai ter que explicar muita coisa inexplicável e buscar outra carreira pois como juiz não serve nem para apitar em time de várzea.

  • Gostei da reflexão

    Professor, sou de Palmas, capital do Tocantins e estudante de direito, estagiei no TJTO, PFN, DPU e MPF e agora num escritório e percebo claramante e sem ideais a profundidade do texto. Eu lerei seus livros para diminuir ao máximo os risco de uma vaidade e suas prováveis implicações num processo.

  • Moro, o novo Baltazar Garzon?

    em breve o juiz Moro irá provar se de fato no Brasil ninguém está acima da lei. Na Espanha o famoso juiz Baltazar Garzon foi expulso da magistratura por grampear conversas entre presos e advogados. Se de fato existir justiça neste país o mesmo deveria ocorrer com o midiático juiz Moro.

  • Para nós,  a famosa frase de

    Para nós,  a famosa frase de Bertold Brecht "Pobre do país que necessita de heróis" merece uma adaptação: "Pobre Brasil : além de necessitar de heróis quando erige um ainda é fajuto". 

    Perdi a fé nesse magistrado quando senti que seu ânimo ia muito além do singelo cumprimento do dever. Uma demarcação válida para qualquer agente público, mas, e especialmente, quando este veste uma toga e cuja função é de caráter estritamente reativo. 

    Analisando em perspectiva, aceitar aquele prêmio "Homem  do Ano" ofertado por uma entidade privada e além do mais protagonista do embate político que ora se trava no país, foi o começo do fim da credibilidade desse Juiz. Daí seguiram absurdos do tipo enviar mensagens e exortações para manifestantes de rua e a onipresença na mídia. 

    Já na prática do seu mister, as perseguições, ilegalidades e abusos de toda monta até atingir o paroxismo que foi afrontar o próprio Supremo Tribunal Federal. 

    Vai se juntar aos que permutaram o exercício do dever a ser cumprido de forma discreta e humilde pelas efémeras glórias transitórias ofertadas por interesseiros e manipuladores. 

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