Justiça

NotreDame é “cruel” e “afronta a dignidade humana” de paciente com cirurgia negada

A NOTREDAME INTERMÉDICA SAÚDE S.A. é protagonista de um caso que ilustra como conveniados sofrem quando precisam realizar um procedimento complexo ou de alto custo. Desta vez, por trás da relutância da operadora em autorizar uma cirurgia solicitada há 6 meses, esta é, de acordo com a defesa da paciente, uma conduta “cruel, indevida, descabida e [que] afronta o princípio da dignidade humana”.

A paciente Clotilde Camargo Magano, de 65 anos, que sofre da síndrome da cauda equina – uma condição médica rara que ocorre quando uma parte inferior da medula espinhal é comprimida [entenda mais abaixo] – precisou recorrer à Justiça de São Paulo, em maio passado, para realizar a cirurgia de descompressão endoscópica lombar.

Mesmo com uma liminar da Justiça, Clotilde ainda não conseguiu realizar a cirurgia e seu médico afirmou, nos autos do processo, que a morosidade fez com que seu quadro de saúde, que já era delicado, evoluísse a ponto de gerar sequelas.

Beneficiária do plano Advance 700 da NotreDame, Clotilde recebeu negativas calçadas em argumentos questionáveis. A operadora se recusa a arcar com os custos totais dos equipamentos necessários à operação e insiste na narrativa fantasiosa, segundo a paciente, de que o médico que recomendou a intervenção cirúrgica não seria credenciado à rede.

“Aí começou a minha guerra com a NotreDame, que inventou vários empecilhos, inclusive que o meu médico não era credenciado. Me negou todas as chances. Ligaram para minha casa dizendo que a minha cirurgia tinha sido aprovada. Tudo mentira. Até que, em maio, eu entrei com um pedido de liminar”, desabafou Clotilde. 

Procurada pela reportagem, a NotreDame não quis comentar o caso em detalhes, alegando que o mesmo encontra-se em disputa judicial [veja mais abaixo].

O GGN consultou um advogado independente especializado em direito médico para analisar a situação. De acordo com Juliano Pessoa, a conduta da NotreDame é passível de reclamação junto à ANS e a busca da paciente pelo Poder Judiciário, o que já foi feito por Clotilde.

“A operadora não pode obstaculizar o acesso do beneficiário a um procedimento de saúde necessário. Em alguns casos, inclusive, existe até a possibilidade de o paciente ser atendido fora da rede credenciada, desde que a instituição [NotreDame] não disponha de profissional e local habilitados”, explicou Pessoa.

Do descaso às sequelas

No meio da disputa que se arrasta há mais de 6 meses, a NotreDame mudou de posição sobre a cirurgia, alegou indevidamente que o médico responsável pelo pedido não é credenciado à rede e considerou a orientação de sua própria Junta Médica como “soberana”, sendo que o colegiado sequer avaliou Clotilde presencialmente, pois sua função é fazer uma análise documental.

O GGN teve acesso aos autos do processo movido em maio pela paciente. Em nota enviada à NotreDame em 3 de agosto, o médico que assiste Clotilde, doutor Alexandre José Reis Elias, afirmou que a conduta da rede ao negar os materiais necessários para a realização da cirurgia é lamentável e ocorre por mero capricho.

Nestes casos, quando há conflito entre os materiais solicitados pelo médico assistente e a operadora, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) preconiza que o profissional deve indicar ao menos três marcas de fabricantes diferentes que atendam ao que fora requerido pelo convênio, o que também foi feito pelo doutor Alexandre. O pedido para a realização da cirurgia foi feito em 16 de fevereiro e o prazo limite estipulado pela ANS para o plano dar uma resposta é de 30 dias.

Segundo o médico, Clotilde já apresentou sequelas como piora na perda de urina, pela compressão das raízes nervosas lombares, e deverá iniciar o uso de sonda vesical, provavelmente em caráter definitivo. “Estamos assistindo uma paciente de 65 anos ficar gravemente sequelada, mesmo tendo direito ao plano de saúde”, escreveu.

Em e-mail da NotreDame enviado à paciente, a fim de que ela custeie sozinha os honorários de seu médico – que, segundo a rede, não seria credenciado – também foi sugerido um outro profissional igualmente apto, caso Clotilde não aceite arcar com as despesas por conta própria.

O GGN teve acesso ao documento que comprova o vínculo do médico à NotreDame. Além disso, apurou que o profissional realiza cirurgias há 20 anos na rede em que é credenciado como neurocirurgião.

Comprovação de vínculo com médico (16/06/23)

Nos autos do processo, a advogada Gina Copola, que defende a paciente, manifestou que a conduta da NotreDame, que retarda a realização da cirurgia, é “totalmente indevida, descabida, cruel e desumana”, considerando que há clara indicação médica em favor da operação.

“É irretorquível, portanto, o direito da autora lastreado em laudo médico, direito este que está sendo negado veementemente pela ré, causando-lhe além das dores físicas acima descritas, também dores psicológicas, em afronta ao princípio da dignidade humana. Ressalte-se que é soberana a opção médica, notadamente quando exposta a partir de avaliações presenciais da paciente, diversamente da Junta médica da ré, que sequer avaliou a autora de forma presencial”, complementou a advogada.

Junta Médica “soberana

Um dos outros pontos questionados pela paciente é a questão da Junta Médica ter mudado de ideia sobre o procedimento, sobrepondo sua opinião à do médico responsável pela paciente.

“Eles dizem, em uma das respostas que eu obtive, que a Junta Médica da NotreDame era soberana, que eu tinha de me submeter a eles porque eles eram soberanos. É uma vergonha isso”, disse a paciente.

Print da ação movida em 10/05

O neurocirurgião que acompanha Clotilde, doutor Alexandre José Reis Elias, quem prescreveu a realização da cirurgia com laudo fundamentado, explicou nos autos da ação judicial as razões pelas quais a cirurgia se faz imperiosa e apontou que a negativa da NotreDame “não tem o menor cabimento e demonstra o descaso com a paciente e seu sofrimento”. 

Trecho ção movida em 10/05

A decisão da Junta Médica autorizava parte dos procedimentos e materiais, mas negava o restante, o que inviabiliza a realização integral da cirurgia. Para a advogada Gina Copola, apenas a decisão nas mãos da Junta Médica já fere o direito da paciente, conforme pacificado na jurisprudência. 

“É o médico da paciente quem precisa dizer o que ela precisa. Aí eles instituem uma Junta Médica que nunca avalia a paciente presencialmente, nunca chamaram ela para uma consulta, e essa Junta Médica diz que não precisa da cirurgia! Ela está sofrendo com dor”, expôs a advogada.

Falsa esperança

Após novo laudo do médico rebatendo todos os argumentos da Junta Médica e na semana seguinte à negativa, para a surpresa de Clotilde, ela foi informada que a cirurgia havia sido autorizada, pedindo para desconsiderar o e-mail anterior. Veja abaixo:

Conversa entre Clotilde e a Junta Médica

Mas a satisfação não durou muito, como demonstra o e-mail da operadora enviado à Clotilde. “Em 14 de abril de 2023, a autora recebeu novo e-mail reiterando o posicionamento anterior no sentido de autorizar a cirurgia de forma parcial, e considerando improcedentes os demais procedimentos, conforme havia sido decidido pela Junta Médica”, manifestou a defesa nos autos.

Segunda negativa da cirurgia integral (Print da ação movida em 10/05)

“E quando questionada sobre tal despropositada decisão, a ré forneceu à autora a descabida e desarrazoada resposta de que a decisão da Junta Médica é soberana”, acrescentou a defesa.

Print de whatsapp que consta nos autos (10/05)

A decisão judicial

A ação foi movida no dia 10 de maio e a medida liminar foi concedida no dia 12. A sentença de primeiro grau foi publicada no dia 11 de julho. A NotreDame recorreu, sem êxito até agora, e o acórdão do Tribunal de Justiça foi remetido para publicação no dia 20 de outubro, determinando à operadora o custeio integral da cirurgia, com exceção do custeio de médico quando este não for credenciado – o que não seria o caso.

Na segunda-feira, 30 de outubro, a advogada precisou entrar com um pedido de cumprimento de sentença. A partir desta data, a NotreDame tem 15 dias úteis para providenciar a emissão da guia para a realização da cirurgia de Clotilde, sob pena de multa em caso de descumprimento da ordem judicial.

Cumprimento de sentença da multa arbitrada (30/10)

“A NotreDame perdeu tudo. Interpôs agravo contra a liminar, e perdeu. Depois recorreu da decisão de primeiro grau e perdeu também (…) Sobre a multa, a NotreDame está impugnando o pagamento, protelando como sempre”, apontou Gina.

Na última quarta-feira, 1º de novembro, a paciente Clotilde se deslocou na atual condição em que se encontra atendendo a uma chamada para comparecer até o hospital da rede NotreDame em São Paulo. Chegando no local, se deparou com mais um episódio de negativa e segue devastada. Ouça abaixo o relato sobre o episódio:

A síndrome da cauda equina

Clotilde sofre da síndrome da cauda equina, uma condição médica rara que ocorre quando uma parte inferior da medula espinhal é comprimida. A cauda equina é composta por um grupo de nervos que se estendem abaixo do final da medula espinhal, assemelhando-se à cauda de um cavalo. Essas raízes nervosas controlam funções sensoriais e motoras na parte inferior do corpo, incluindo os músculos da bexiga, do intestino, dos órgãos genitais e das pernas.

“Ela [a síndrome] meio que me separa o corpo, a minha parte de cima da minha parte de baixo. Eu tenho problema na minha bexiga, no meu intestino porque vai fechando tudo, vai comprimindo tudo. Aí eu sinto muito formigamento nas minhas pernas, nos meus pés, fora a dor que sinto, não consigo ficar reta”, relatou Clotilde.

A condição quase afetou recentemente o cantor Wesley Safadão, que conseguiu realizar uma cirurgia às pressas para evitar o quadro, que pode provocar danos neurológicos irreversíveis. No caso de Clotilde, a única saída para reverter o cenário, já preocupante, seria a cirurgia para descomprimir o nervo neurológico – descompressão endoscópica lombar. 

“Eu fico triste porque eu tenho quatro filhos, quatro netos, e para eles também é penoso tudo isso. Eles têm uma mãe que é jovem. Você vai sempre me ver sentada, porque não tenho condições de andar, de fazer nada. Tudo o que exija de mim, fico extremamente cansada. Vou usar uma metáfora: eu me sinto como se estivesse dentro de uma garrafa fechada, preciso sair, isso me asfixia”.

A posição da NotreDame

A reportagem do GGN procurou a NotreDame para entender a situação. Em nota, o posicionamento da rede: A empresa tem o compromisso de oferecer a melhor assistência e cuidado para seus clientes, reforça ainda que está à disposição da cliente para esclarecimentos. No entanto, como o caso em questão se encontra na Justiça, a companhia não comenta processos judiciais em andamento.

Carla Castanho

Carla Castanho é repórter no Jornal GGN e produtora no canal TVGGN

Carla Castanho

Carla Castanho é repórter no Jornal GGN e produtora no canal TVGGN

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  • Penso que depois de reconhecer definitivamente a derrota, a operadora talvez tenha que pagar uma indenização efetivamente bem acima do custo que tenta recusar a arcar integralmente. O dano fisico, que na descrição do médico da paciente já começa a produzir sequelas, em que pelo menos uma já se pode considerar definitiva, parece ser apenas uma pequena parte de um prejuízo ainda maior, que pode envolver: a confiança, a credibilidade e a dúvida sobre a lealdade total da operadora, que envolve normas e condições contratuais estipuladas como deveres do cliente e os direitos contratuais dos clientes que também estão registrados no mesmo contrato de adesão. Quantos associados devem, até antes de formarem a sua avaliação definitiva, já terem reduzido o percentual de confiança e segurança que possuíam sobre a operadora, antes da divulgação deste comportamento talvez inexplicável da operadora, que deixa indícios de privilegiar o capital, em detrimento da prioridade com a saúde solene e digna do associado adimplente, responsável e cumpridor rigoroso dos seus deveres estipulados em contrato.

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