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400 mil mortos, ninguém será punido?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

400 mil mortos, ninguém será punido?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Há pouco mais de um ano a pandemia chegou ao Brasil. Ela matou meu tio Tonico e abreviou a vida da mãe de um amigo e cliente. Um colega advogado também morreu por causa do vírus fatal. A ex-sogra do meu irmão ficou doente e sobreviveu. Não há absolutamente ninguém no meu círculo de conhecidos que não tenha uma história semelhante para relatar. Filhos mortos, enteados entubados, avôs e avós desaparecendo de um dia para o outro. Famílias inteiras foram simplesmente eliminadas.

A insensatez de Jair Bolsonaro ajudou a provocar essa catástrofe. Ele sabotou a aquisição de vacina, distribuiu remédios ineficazes, desafiou as recomendações da Organização Mundial de Saúde, fez campanha contra o uso de máscaras, lutou e ainda luta para impedir a adoção de medidas restritivas e chegou até a ameaçar juízes do STF que tentaram minimizar o estrago que ele causou. Nem mesmo as mortes de policiais, militares, generais, políticos da base governista e militantes do bolsonarismo foram capazes de convencê-lo de que ele estava cometendo um crime contra a humanidade.

Certa feita, o presidente brasileiro disse que a especialidade dele é matar. Durante a pandemia ele conseguiu provar que é realmente um especialista. Não resta dúvida de que ele provocou milhares de mortes. A questão agora é quando e como ele será responsabilizado por suas ações e omissões criminosas.

Em razão de não seguirem as orientações do comandante em chefe, as Forças Armadas foram capazes de cuidar bem de suas tropas. Mas os comandantes militares não demonstraram qualquer compromisso específico com a preservação das vidas dos brasileiros. Muito pelo contrário, os militares produziram e distribuíram cloroquina. O empenho deles em relação à vacinação em massa foi inexistente. É emblemática a notícia de que um general tomou vacina escondido. Não deveria ter ele se entupido de cloroquina?

A cúpula do Judiciário fez o que pode. É evidente, porém, que muito mais poderia ter sido feito se o Procurador Geral da União prestasse mais atenção às suas obrigações funcionais do que à sua pretensão pessoal de ser nomeado Ministro do STF agradando e/ou protegendo o presidente da república.

Ninguém consegue cometer um genocídio sozinho. O que foi verdade na Alemanha nazista (1942 – 1945), no Vietnã (1965 – 1973) e em Ruanda (1994) não deixou de ser verdade no Brasil. Bolsonaro só conseguiu provocar um número substancial de mortes em razão de ser apoiado por militares, policiais, deputados, senadores, pastores evangélicos, médicos, jornalistas, prefeitos, governadores e juízes. Um destaque especial deve ser dado aos membros do MPF que escolheram o lado do presidente enquanto o número de mortes crescia de maneira consistente.

Apesar da valentia de alguns adversários, de maneira geral é possível dizer que Bolsonaro não foi realmente incomodado por ninguém. A imprensa grande normalizou sua conduta e encobriu o genocídio como se ele fosse uma tragédia natural e não um programa de governo. A oposição não foi para as ruas, pois isso seria apenas uma maneira de facilitar a propagação da pandemia. Na verdade, o presidente somente se sentiu incomodado quando da instalação da CPI do Genocídio, equivocadamente chamada de CPI da Covid.

Não há muito mais o que dizer. Cada qual sabe o que fez ou o que deixou de fazer. Alguns certamente irão se distanciar de Bolsonaro com medo de sofrer algum tipo de represália judicial. Mas não creio que os bolsonaristas (especialmente aqueles mais fanáticos que acreditam que ele é o escolhido por deus) sentirão algum tipo de remorso. O arrependimento deles, de qualquer maneira, será ineficaz.

400 mil pessoas estão mortas, os parentes delas não conseguirão preencher o vazio que a pandemia deixou. Qual será a compensação que as vítimas do genocídio receberão? Provavelmente nenhuma. O Brasil tem uma especial vocação histórica para triturar gente como se isso fosse algo necessário e até mesmo virtuoso.

No apêndice da obra que escreveu e publicou em meados do século XIX, o embaixador inglês WM. Gore Ouseley (1797 – 1866), afirma que “A verdade é que nos primeiros tempos das descobertas dos espanhóis e portugueses, tratavam os aborígenes como se não tivessem eles qualquer direito de serem considerados homens ou classificados como criaturas de nossa espécie.” (Descrição de Vistas da América do Sul segundo desenhos originais feitos no Brasil, no Rio da Prata e no Paraná etc etc, com notas, WM. Gore Ouseley, 1a edição em língua portuguesa, Editora Primor, Rio de Janeiro, 1978, p. 121/122)

As 400 mil pessoas mortas pelo vírus letal não combatido pelo governo pertencem à mesma espécie que os membros da família Bolsonaro e às famílias dos civis e militares que continuam apoiando o mito justamente porque ele provocou um genocídio? Ok. Essa pergunta é apenas retórica. Sua função é apenas reforçar uma verdade observada no Brasil pelo citado embaixador inglês. A imagem que nós fazemos de nós mesmos foi estraçalhada. Finalmente, o “homem cordial” (esse mito criado para apaziguar nossa má consciência) deu lugar ao verdadeiro homem brasileiro “o genocida cruel, desumano e contumaz”.

Existem no Brasil condições civilizatórias para punir o que Bolsonaro e seus apoiadores fizeram? Essa pergunta dolorosa terá que ser respondida pelas autoridades e, principalmente, pelos membros do Sistema de Justiça.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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