Luis Nassif Online

O problema não é Maurício do vôlei, mas os cães de guerra, por Luis Nassif

Desisti de ser crítico de música devido à cultura do cancelamento já em voga nos anos 70. A lógica era simples. A oposição era massacrada em todos os níveis. A opinião política era cerceada, não se podia duvidar do milagre econômico. O único campo onde havia livre expressão era o da cultura. Toca, então, a colocar todos os julgamentos estéticos sob a análise do patrulhamento.

Qualquer artista medíocre era incensado, se o crítico descobrisse em sua obra qualquer vestígio de crítica ao regime. E, olhe!, naqueles tempos bicudos toda música tinha que ser disfarçada em figuras de linguagem e imagens de difícil interpretação. Ao contrário, se o artista fosse “alienado”, era destruído. Ficou famoso, na época, o cemitério de Henfil, em que foi “enterrada” até Clarice Lispector.

Henfil tentou se explicar:

“Eu a coloquei no Cemitério dos Mortos-Vivos porque ela se coloca dentro de uma redoma de Pequeno Príncipe, para ficar num mundo de flores e de passarinhos, enquanto Cristo está sendo pregado na cruz. Num momento como o de hoje, só tenho uma palavra a dizer de uma pessoa que continua falando de flores: é alienada. Não quero com isso tomar uma atitude fascista de dizer que ela não pode escrever o que quiser, exercer a arte pela arte. Mas apenas me reservo o direito de criticar uma pessoa que, com o recurso que tem, a sensibilidade enorme que tem, se coloca dentro de uma redoma”, explicou Henfil em entrevista ao Jornal da época.

Era uma guerrilha, sim, visando estimular a resistência, mas uma guerrilha covarde, porque “executava” os dissidentes – e, nas artes daqueles tempos, os defensores da ditadura eram dissidentes. Aos adeptos, passava a falsa sensação de que eram fortes e coesos e que estavam colocando em xeque a ditadura.

Tive papel nessa história, sim. Ajudei a enterrar a carreira da dupla Dom e Ravel, do “eu te amo, meu Brasil”, quando estavam prestes a se tornar os compositores oficiais da ditadura. Mas, com o tempo – e o amadurecimento jornalístico – percebi não apenas a inutilidade, mas o esforço contraproducente dessa ofensiva, que gerou enormes reações no próprio meio artístico. É só relembrar como a grande Marília Pera reagiu às primeiras passeatas contra a ditadura, não por apoio à ditadura, mas por crítica ao oportunismo do patrulhamento. E ela não era uma Regina Duarte qualquer. 

Sobrou até para Elis Regina.

A arte teve papel central quando passou a celebrar a resistência, a luta pela liberdade, pela solidariedade, sem o viés de executar os dissidentes. Henfil teve um papel extraordinário, ironizando todos os bordões da direita, que serão os mesmos até o final dos tempos.

Repete-se, agora, o mesmo processo.

Um dos pontos centrais da guerra cultural empreendida pela pela ultra-direita – e acolhida pela mídia corporativa -,  a partir de 2005, consistiu na desmoralização do “politicamente correto”, a partir de alguns exageros cometidos. Foi o combustível para o discurso de ódio que tomou conta da mídia e do país nos anos seguintes, e que permitiu à ultradireita transformar os oprimidos em opressores. É só conferir os arquivos com os grandes arautos da ultradireita que se instalava no país.

Um radicalismo alimenta outro. Hoje a mídia embarca na onda contrária, volta ao politicamente correto e ao “delenda os dissidentes”. Como mídia e seus adeptos se movem como as ondas do mar, amanhã voltará à onda do politicamente incorreto e do “delenda os defensores do politicamente correto”, porque a mídia corporativa não tem princípios, ela se guia pela onda do momento. Ela é pró-cíclica, isto é ajuda a radicalizar os movimentos de opinião pública em uma direção e outra. 

O que não se percebe é que o problema não são os adversários de idéias, mas os cães de guerra, aqueles que são atiçados para estraçalhar quem vier pela frente: hoje, os politicamente incorretos; amanhã, os politicamente corretos de novo.

A bobagem de Maurício poderia ter sido resolvida com um pedido mais explícito de desculpas, com uma nota oficial do Minas Tênis, colocando claramente sua posição em relação ao tema, com a celebração dos atletas gays e trans.

Mas o país do linchamento quer sangue.

Tente analisar o dia seguinte dessa campanha contra o ato de homofobia do jogador Maurício.

  1. Criou um novo ídolo da direita, não se tenha dúvida.
  2. A punição a ele será invocada, para se exigir peso igual a quem expressar opinião contrária, isto é, de defesa do politicamente correto. É só conferir a história recente. No processo do impeachment, as ruas ficaram coalhadas de juízes e procuradores em franca campanha política pró-impeachment e pró-Lava Jato. Quando começou a se exigir punição ao ativismo político, a mão pesada dos corregedores se abateu não sobre eles, mas sobre os chamados progressistas. Os bolsonaristas continuaram impunes, alguns como comentaristas de programas de ultra-direita, outros espalhando processos contra seus críticos.
  3. Criou uma resistência contra o politicamente correto entre outras celebridades do esporte e até da justiça.
  4. Alimentou o racismo e a reação das PMs do país contra os “politicamente corretos”. Contra o boicote digital, pau na moleira – que é a forma de atuação da ultra-direita armada.

O GGN continua em sua posição de defender firmemente todos os princípios civilizatórios, de ser contra toda forma de discriminação e também contra toda forma de linchamento.

Luis Nassif

Luis Nassif

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  • Com esse argumentos pode se defender o racismo, mas um parte da esquerda só é contra o 'politicamente correto' quando se trata de homofobia. Chega-se ao ponto de dizer que o caso do Mauricio alimentou o racismo e a reação da PM contra o politicamente correto. Eu não sei que país é esse em que a PM nunca reagiu contra o politicamente correto antes do caso Mauricio souza, em que não existia racismo antes desse caso. Mas para culpar o LGBT de todos os males do mundo cabe tudo.
    A esquerda está de parabéns agindo como linha auxiliar da homofobia, não poderia ter se esmerado mais.

  • Opinião existe para criar condições à dialética, a ditadura proibia várias expressões, mas o povo é criativo, muitos não falavam, mas tinham barbas, igual a de comunistas famosos ou sindicalistas, uma expressão não falada e que era impossível de proibir, mas uma direita que se traveste de esquerda não calará às pessoas, até os idiotas tem o direito de dizer o q pensa. Porém a mídia entrou nessa pq ela precisa criar uma nova onda, houve a onda zoonaro, agora é a onda identitaria, isso é para criar um novo campo de disputa política, Lula, Zoonaro e os identitarios, é necessário arrancar eleitores do Zoonaro e do Lula, já que os identitarios não gostam do Lula e como o Jean willis falou certa vez, " operarios são homifobicos", essa é a razão, agora para essa falsa esquerda todos são racistas, homofobicos ... O maior propagador da homofobia é a religião, então pq os identitarios não fazem o mesmo com religiosos, pq não tacam fogo na bíblia ? Massacrar um atleta é fácil .

  • O 'link' da página inicial para este texto está quebrado, leva à própria página inicial. Quanto ao texto, concordo inteiramente. Acrescento: os politicamente corretos se deixam vencer pelo seu ego ao criticar um Maurício da vida, que é exatamente o que a direita quer. Agora os Bolsominions têm um ídolo a mais, têm confirmadas a suas suspeitas (sem sentido) de "falta de liberdade", estão mais unidos por causa do inimigo em comum, polarizaram ainda mais o país etc etc etc. Tudo dentro do 'script' do Partido Militar. Muito melhor teria sido não falar nada, deixar este combate para tempos mais adequados

  • os oceanos têm locais sem vento, sem corrente nos quais juntam-se lixo de toda sorte (vimos isso com david attenborough) - é a morte (vida é movimento). perdemos, nassif, morremos. sem aceitar o fato 'tamos nos debatendo atrás de alguma quimera que, como tal, é natimorta. o mundo pensante se assombrou com eleição Lula (roda-viva antigo c/jeremy rifkin é exemplar). chegamos lá, conseguimos e a vida nos palácios se impôs. fizemos mudanças cosméticas e mantivemos a estrutura. erramos feio aqui e ali. mas o maior erro foi não prever q as forças reacionárias estavam se aglutinando para darem o golpe (de novo). hoje 'tamos procurando uma bússola. que se dane um jogador qq e seu pensamento acerca da sexualidade alheia. q se dane este ou aquele q acha isso ou aquilo a respeito. danem-se dons e raveis (quem seria elis hoje?). lispector? preferimos piva com sua virgem “que lava sua bunda imaculada na pia batismal” e seus “anjos de Rilke dando o cu nos mictórios”. daqui a pouco teremos que ir ao "comércio de árabes e judeus sempre atrás do seu dinheiro, qual furtivos punguistas na estação rodoviária". é isso: hardcore.

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