Ofensa sistemática ao meio ambiente como forma de degradação constitucional: a importância da ADPF nº 760, por Marcelo Neves

Ofensa sistemática ao meio ambiente como forma de degradação constitucional: a importância da ADPF nº 760

por Marcelo Neves

Tem ficado cada vez mais evidente que a relação entre sistema e ambiente se caracteriza pela alteridade. Essa assertiva vale também para a relação do ser humano ou da sociedade com a natureza. O ambiente natural é condição infraestrutural, a base mesmo, da vida humana e social. Imaginem se desaparecerem as condições atmosféricas que viabilizaram o surgimento da humanidade e da respectiva sociedade. Obviamente, o ser humano e a sociedade extinguir-se-ão.

Sabe-se que os sistemas jogam necessariamente detritos em seu ambiente. Todo sistema sobrecarrega o seu ambiente. Isso porque há uma relação instrumental entre sistema e ambiente. Mas, há um momento em que o abuso na destruição do ambiente pode deteriorar os sistemas e mesmo levá-los à extinção. Daí por que há uma dimensão de alteridade do sistema com qualquer ambiente, inclusive com a natureza. O ser humano e a sociedade devem cuidar do seu ambiente natural como um “outro” que é fundamental para sua existência e desenvolvimento. Identidade e alteridade são inseparáveis na relação entre sistema e ambiente, entre, portanto, ser humano ou sociedade e natureza.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 760, proposta por diversos partidos políticos e contando com várias organizações sociais como amicus curiae (“amigos da corte”), alerta para o assustador aumento do desmatamento da Amazônia brasileira em 2019 e 2020, nesses dois anos em que o país está sendo (des)governado por um presidente de extrema direita e totalmente irresponsável. Os dados chocantes apresentados na petição inicial da mencionada ADPF são muito variados, todos apontando para o descumprimento do PPCDAm (O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal) e de leis e regulamentações que haviam levado à redução marcante do desmatamento ilegal a partir de 2004, destacando-se uma diminuição de 84% entre 2004 e 2012 (de 27.772km2 para 4.571km2 por ano). A título de exemplo, cabe enfatizar alguns números. Em uma Floresta que já acumulou um desmatamento de 19%, o que equivale a duas vezes o território da Alemanha, 10.129km2 foram desmatados em 2019, 34% a mais do que em 2018, segundo órgãos oficiais, que também estimam que a marca de 13.000km2 será superada em 2020, ultrapassando três vezes a meta de desmatamento para este ano, de 3.925/km2. Dessa maneira, será a primeira vez que, em dois anos consecutivos, a taxa cresce acima de 30% em relação ao ano anterior. Por sua vez, o número de focos de queimada em 2019 chegou a 129.089, o que significa um aumento de 39% em comparação com 2018 e de 84% em cotejo com a média de 2011 a 2018.

Esses números estão inseparavelmente associados à paralisação do Fundo Amazônico pelo governo federal a partir de 2019, à diminuição alarmante de dotações orçamentárias para as políticas públicas, os programas e as ações de proteção da Floresta Amazônica e, em conexão, à redução drástica das autuações e sanções aplicadas em caso de infrações ambientais, muitas constituindo atos criminosos típicos. Por exemplo, a quantidade de uma das sanções mais aplicadas ao desmatamento ilegal, os termos de embargo, diminuiu 21% em 2019 e 84% em 2020, comparando com os anos anteriores. Além dos cortes orçamentários, há algo de impressionante na queda da execução de despesas autorizadas. Nesse particular, é desapontador o fato de que até o dia 31 de agosto só havia sido liquidado 0,4% do valor autorizado para as chamadas “ações finalísticas”, a saber, medidas destinadas à execução de políticas públicas de proteção e conservação da floresta amazônica.

Essa situação desastrosa de lesa-floresta tem impacto negativo direto nas comunidades indígenas, mas também é capaz de provocar danos ao povo brasileiro em geral, podendo até mesmo pôr em risco a própria humanidade. O significado da preservação da Amazônia para a qualidade e, no limite, para manutenção da vida humana e social na Terra é hoje algo indubitável. Foi nesse espírito que a Constituição Federal de 1988 trouxe normas claras de proteção e defesa do meio ambiente. Entre os diversos dispositivos que impõem ao Estado, às organizações privadas e aos cidadãos brasileiros e estrangeiros o dever de preservação da natureza, destaca-se o art. 171, inciso VI, que estabelece “a defesa do meio ambiente” como princípio da ordem econômica. Sendo da competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (um poder-dever nos termos do art. 23, inciso I), a Constituição dedica um Capítulo exclusivamente ao meio ambiente, cujo artigo 225 determina: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Nesse dispositivo (§ 4º), “A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”. Evidentemente, para cumprir esse dispositivo e outros preceitos referentes ao meio ambiente, a União tem não apenas de legislar adequadamente sobre “proteção do meio ambiente e controle da poluição” (em competência concorrente, mas prevalente sobre a dos Estados e do Distrito Federal: art. 24, inciso VI), mas também e sobretudo executar corretamente a respectiva legislação. Se o poder público por ação ou omissão atua concretamente contra a preservação do meio ambiente e, portanto, viola preceitos fundamentais nessa matéria, cabe a propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pelas entidades e órgãos legitimados para tanto (art. 101, § 1º, da CF; Lei nº 9.882/1999). No presente caso, há claros indícios de que se trata de uma atitude consciente e intencional do próprio governo no caminho da destruição da Floresta Amazônica e do meio ambiente em geral, como se tornou público em gravação de reunião do alto escalão do governo liberada pelo Supremo Tribunal Federal, na qual o próprio ministro do meio ambiente defendeu expressamente que fosse utilizado o período da pandemia para que fossem tomadas, às pressas, medidas contrárias à preservação do meio ambiente. Observa-se, assim, que há uma atuação sistemática do governo federal para destruir o meio ambiente e, portanto, descumprir a Constituição. Isso significa que o desastre ambiental provocado pelo governo é uma das dimensões da degradação constitucional por que passa o país no presente.

Um dos pontos que me chamou sobremaneira a atenção na ADPF nº 760 diz respeito a estudos científicos que apontam para a iminência de “ponto de não retorno” (tipping point), no qual, ao atingir “20% a 25% de desmatamento, a Amazônia passará por mudanças irreversíveis, com irremediáveis perdas dos serviços ecossistêmicos por ela prestados”, o que poderá levar até mesmo ao desaparecimento da floresta tropical na Amazônia. Isso coloca também a questão da responsabilidade do Brasil perante o direito internacional. O impacto desse quadro sombrio para a humanidade nos governos de diversos países já tem levado a sugestões de sanções ao Brasil por parte de países mais poderosos na constelação de poder internacional, como embargos econômicos, caso o governo brasileiro não recue na sua política contrária ao equilíbrio ambiental na Amazônia. E já se insinua até mesmo que, para evitar um apocalipse ecológico, poder-se-ia recorrer a uma intervenção das Organização da Nações Unidas na Amazônia, interpretando-se a prática governamental de destruição da Floresta, no limite, como uma ação que ameaça a segurança internacional, nos termos do art. 24 da Carta das Nações Unidas. Seja correta ou não essa intepretação extensiva ou mesmo essa integração analógica, a verdade é que a prática antiecológica do governo brasileiro atual pode expor o Brasil a graves sanções internacionais que poderão ter impacto desastrosos para o povo brasileiro e mesmo levar, em caso extremo, à limitação de sua soberania em determinada área do território nacional.

Por todo exposto, é fundamental que o Supremo Tribunal acolha, com urgência, a ADPF nº 760, determinando que o Governo cumpra os ditames constitucionais de proteção e defesa do meio ambiente. Assim, o STF estará interrompendo a degradação constitucional em matéria ambiental e evitando que o Brasil seja responsabilizado internacionalmente pela atitude antiecológica disparatada do governo federal.

Redação

Redação

Recent Posts

Dengue e escassez de rémedios deixa o Governo Milei à deriva

Relatório expõe crise de saúde na Argentina, enquanto país enfrenta a pior epidemia de dengue…

2 horas ago

Brasil sobe 10 posições no ranking de liberdade de imprensa

Situação ainda é ‘problemática’, diz Repórteres Sem Fronteiras”; País chegou ao 82º lugar entre 180…

2 horas ago

Não vai ter limite orçamentário para ajudar o RS, diz ministro

"Haverá apoio necessário para construir cada casa, cada estrada, cada ponte, cada escola, cada unidade…

2 horas ago

Sobe para 56 número de vítimas fatais por temporais no Rio Grande do Sul

De acordo com último boletim da Defesa Civil do estado ainda há 67 desaparecidos. Previsão…

2 horas ago

Após privatização, tarifas de água aumentaram mais de 100% em comparação à Sabesp

Confira o levantamento comparativo com as tarifas do Rio de Janeiro, após privatização

5 horas ago

Governo federal organiza força-tarefa para trabalho no RS

Escritório de monitoramento em Porto Alegre vai concentrar dados sobre ações a serem tomadas por…

16 horas ago