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A arte performática de Tonny Semente

Por Eduardo Waack

 

A gente se encontrava nos finais de tarde, em Recife, quando íamos vender e divulgar nossos livros de poemas nas ruas e nos bares do centro da metrópole pernambucana. Eram livros datilografados e xerocados, com as páginas numeradas e grampeadas. Uma atividade artesanal desenvolvida de norte a sul do país, desde os anos 1970. Eu escrevia os poemas a mão, e então seguia à UFPE onde na Biblioteca emprestava a máquina de escrever e ganhava também o papel e as cópias. Deixávamos os livros nas mesas, para que o leitor conhecesse nossa produção, e pouco depois retornávamos. Vendia-se bastante poesia assim. E entre um gole de cerveja e outro (ou cachaça, nas horas de menos sorte) fazíamos novos amigos.

 

Encontrei Tonny Semente pela primeira vez em abril de 1987, e a atração foi mútua. Ele vinha caracterizado com sua tradicional túnica branca (era o início de suas futuras performances), cabeludo-barbudo. Bem humorado, não perdia a ocasião de emendar uma boa sátira. Ofereci-lhe um exemplar de meu pequeno livro “Água”, e ele retribuiu com dois volumes de sua lavra, “À Flor da Pele” e “Você Por Perto”. Ao seu lado, a cidade tornava-se familiar, e nós, jovens poetas, nos auto afirmávamos, em meio a uma profusão de vendedores de amendoim, flores, frutas, castanhas de caju, hippies (com seu artesanato em durepoxi, tear, osso e madeira), pedintes e outras figuras desconcertantes.

 

A poesia de Tonny é combativa e sanguínea, espontânea, pois ele bebeu na fonte dos grandes mestres e malditos, e tem a inspiração antenada que só os autênticos possuem. Dava a cara a bater, às vezes com um violão debaixo do braço, escrevendo uma página importante da cena cultural e independente local. Nunca nos vendemos ao sistema, nem pactuamos em panelinhas excludentes. Nossa literatura busca incluir e transmutar. O muito ou pouco que temos foi construído com muito esforço e dedicação. Seus versos me acompanham pela vida afora, como o emblemático “sou o meu sonho, e daí?”.

 

 

Para terminar estas lembranças, deixo uma história, das muitas que vivemos. Numa tarde quente de setembro ele queria fumar um cigarrinho e eu disse-lhe que tinha, em casa. Para lá nos dirigimos. Tomamos o ônibus lotado e pouco depois descemos no bairro de Peixinhos, em Olinda, frente à favela do Cabogato. Ali, junto ao Beberibe, eu era hóspede do fotógrafo Daniel Aamot. Entramos na comunidade, cumprimentei os seguranças, e chegamos em casa. Ao acender o cigarrinho manufaturado, ele me perguntou irônico se eu era daqueles paulistas que após fumar gostava de dar a bunda. “Não Tonny, não gosto!”

 

E então fumamos, conversamos, desconversamos e nada do Tonny ir embora. Escureceu, e ele ali. Aos poucos mudava de cor e de jeito, quando pensei, “esse camarada quer me dar o rabo”… Até que Tonny dispara, “Eduardo, não saio daqui sozinho, vamos comigo até a avenida”. Argumentei que não havia perigo, que a galera o tinha visto entrando comigo, mas não adiantou. Então o levei ao asfalto, ele meio sem graça, e nos despedimos após a chegada do circular. Dias depois, em pleno centro do Recife, éramos dois a beber e rir daquele momento único, vivido três décadas atrás, e que agora trago a vocês. Sempre juntos, Tonny Semente!

 

 

Os anos 1980 e a poesia das ruas

 

Depoimento de Tonny Semente

 

“Época em que nas cidades de Recife e Olinda fervia poesia alternativa de rua. Os fanzines e livros transitavam de mão em mão, de trocado em trocado, em recitais e performances. Lugares percorridos pelos poetas todos os dias: Parque 13 de Maio, Rua do Hospício, Beco da Fome, Rua da Aurora, Av. Conde da Boa Vista, Livraria Livro Sete, Pátio de São Pedro. Em Olinda: Ecológico Bar, Alto da Sé, Quatro Cantos, Bar Maconhão, Praça do Jacaré, Querubim, Feirinha… Os poetas que ejaculavam fogo no orgasmo atômico eram: Haroldo (o livre-pensador), Jorge Lopes, Chico Sá, Fred Caminha, Erickson Luna, Juhareiz Correya, Walmir Jordão, Miró, Tonny Semente, Malena Brau e vários outros. Eduardo Waack, presente na cena pernambucana vivendo de seu próprio brilho, chegou e logo foi adotado pelos poetas, ruas e bares.”

 

“À Flor da Pele”, autêntico representante da poesia alternativa, foi publicado em 1987

 

Tonny Semente nasceu no Rio de Janeiro em 1960. Criado em Olinda, Pernambuco, atualmente reside em Maceió (AL). Casado com Val Feliciano, tem dois filhos e quatro netos, três discos gravados (Tonny Semente, 2006, Dente da Noite, 2013 e Risos e Erros, 2017). Divulga, com sua banda, o espetáculo musical Ofício MCMLX. É criador do Sarau de Monte Pio.

 

Faça contato: telefone / WhatsApp (82) 98834-6457

 

 

 

Concerto autoral com Tonny Semente e banda, 2018

 

https://www.youtube.com/watch?v=UDHlSEuh-jE&index=4&list=LL90MDY_9lSoH8QFxLPpaQDQ   

 

Este poema foi escrito a quatro mãos em Olinda, dia 25/08/1987

 

 

 

 

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