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Charles, o que poderia ter sido o maior flautista da história

Atualizado às 15:38

Por Marise

O gênio que se perdeu

Crônica de 19/02/2005. de Luis Nassif

O evento terminou perto das dez da noite. Era convenção de um banco e me convidaram para um trote no pessoal. No meio do jantar, entraria no palco como se fosse dar uma palestra de economia. Antes que sobreviesse a indigestão geral, conduziria uma roda de choro. Levei um time da pesada, o Zé Barbero, no sete cordas, o Stanley na clarineta, o Alexandre no trombone, o Joãozinho Torto no cavaquinho e a Roberta no pandeiro.

Sai dali direto para o Ó do Borogodó, com a minha filha Luizinha, uma mocinha adulta, linha nos seus 21 anos. Ia se apresentar um duo de violão, um deles o Mineiro, um dos mais sofisticados violonistas aqui de São Paulo, mais um aluno, menino de pouco mais de vinte anos.

Enquanto afinavam o violão, fiquei matutando sobre a qualidade da nova geração de músicos. De vez quem quando baixo no velho bar do Alemão, e, em um dos dias da semana, se apresenta uma rapaziada também mal passando os vinte anos, todos com talento e, muito mais do que na minha geração, com formação musical.

Estava imerso nesse pensamento quando o moreno forte veio em minha direção. Estava com esses calções longos, tênis, compleição saudável. Demorei um tempo para reconhecer o menino Charles da Flauta, agora adulto de mais de trinta anos, tentando um penoso recomeço.

Conversa comigo, mostra carinho, evita olhar muito para a moça ao meu lado, suspeitando que fosse alguma paquera de coroa assanhado. Quando lhe disse que era Luizinha, derreteu-se, lembrando-se de mais de dez anos atrás.

Contou da luta contra as drogas, das reuniões nos Alcoólicos Anônimos, do casamento com uma moça que está colocando-o na linha.

Enquanto fala, minha memória salta para 16 anos atrás, em uma manhã em que levei a Luizinha e a Mariana para passear na praça da República. Chegando, vi três moleques batendo bola e carregando instrumentos, flauta, violão e cavaquinho. Quando começaram a tocar, parei. O som que vinha da flauta não era desse mundo.

O rapaz acompanhava o irmão gêmeo, que cantava bonito, mas fazia tais floreios, com tal segurança, que não tive dúvidas de estar diante de um gênio.

Perguntei o nome dos três, eram Charles da Flauta, o gêmeo Reinaldo, do violão, e o Alex do cavaquinho. Tocavam na rua com o pai, um sujeito bronco, bovino, mas de boa índole, que mascateava enquanto os filhos tocavam.

Perguntei onde ficavam durante a semana. No final de semana seguinte convidei o produtor musical Aluízio Falcão para conhecer os meninos. Pedi para Charles tocar “Primeiro Amor”, de Patápio. Envergonhado, disse que não sabia. Antes do final do dia, foi ao Hilton Hotel, onde estava hospedado o grande Altamiro Carrilho, e ficou telefonando para o apartamento, até que o músico descesse e aceitasse lhe ensinar a valsa. Aprendeu na hora. E é uma das peças mais complexas da flauta brasileira.

Dali saiu o LP “Pingo de Gente”, patrocinado pela Eletropaulo, graças ao Audálio Dantas, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas..

Antes do lançamento do LP, percebi que Charles iria estourar em todo o país. Levei sua família em casa, expliquei que certamente teriam sucesso, que seriam convidados para tocar no programa da Xuxa e em outros mais, que ganhariam dinheiro, mas que tudo era provisório: que aproveitassem o momento e não se deslumbrassem.

Bobagem, pretender que aqueles meninos pudessem entender sequer de longe o novo mundo que se abriria para eles. Mesmo assim, convenci o Audálio a contratar o velho Carrasqueira, o “canarinho da Lapa”, mestre de todos os flautistas de São Paulo, para ministrar aulas a Charles.

O disco estourou, conforme o previsto, e Charles passou a ser incensado, de imediato, pelo Olimpo musical brasileiro. Foi convidado para tocar com Paulo Moura, Arthur Moreira Lima, apareceu em programas de televisão e, em um encontro de músicos de rua, na Holanda, patrocinado pela Unesco. Foi considerado “hors concurs” e voltou com uma medalha, que pediu para a Ica guardar para ele.

O sucesso virou a cabeça deles e, antes deles, do pai. Deixou as aulas com Carrasqueira e, junto com os irmãos, tiveram conflitos de monta, especialmente após o pai ter se casado de novo. Chegaram a passar uma temporada na Febem, mesmo não tendo cometido crime algum.

Quando Charles estava próximo de fazer 18 anos, achei que estaria maduro para um passo maior. Chamei-o para conversar. Dias antes, tinha conversado com o maestro Júlio Medaglia, que conseguiu que Charles fosse aceito pelo primeiro flautista da Filarmônica de Berlim. O alemão entrou em êxtase quando ouviu o LP de Charles, e aceitou na hora ser seu professor.

Originalmente, um músico com formação de sopro, Medaglia não tinha dúvidas: se se dedicasse um ano aos estudos, Charles seria o maior flautista do mundo. O mesmo me disse Arthur Moreira Lima, o mesmo me disse Baden Powell.

Com o professor alemão aceitando o aluno, conversei com um irmão do Décio e do Cláudio Tozzi, diretor da Phillips, que conseguiu que a empresa bancasse a bolsa.

Quando perguntei ao Charles se gostaria de estudar no exterior, ficou um pouco indeciso, com receio de abandonar a família, que dependia do seu talento. Conversei com o Comandante Rolim, que imediatamente empregou a família toda para tocar na sala de embarque da TAM, inaugurando o espaço musical.

Os músicos alemães chegariam ao Brasil em agosto, para uma turnê, e levariam consigo Charles. Em junho, Rolim me encontrou na sala de embarque, e me disse que algo estava errado com o Charles. Andava irritadiço, atrasando nas apresentações, ia muito ao banheiro.

Chamei os dois gêmeos em casa para uma conversa. No dia seguinte minhas filhas deram pela falta de brinquedos. Um comerciante de Cotia ligou reclamando de um cheque meu que recebera, e cuja assinatura não conferia.

Estava claro que a droga tinha conquistado mais dois adeptos.

Conseguimos com o Laco, ex-pediatra de nossas meninas, sua internação em uma clínica de drogados.

O tratamento durou dois meses. Foi o último momento de tranqüilidade dos irmãos. Íamos lá aos finais de semana, eles contaram a história da mãe, que morreu em seus braços quando tinham nove anos, compuseram músicas para minhas menininhas, escreveram cartas de agradecimento.

Quando saíram, hospedei-os durante algum tempo em um quartinho no predinho da Dinheiro Vivo, na rua Maria Antonia. No O primeiro dinheiro que conseguiram, em shows, gastaram com mulheres e drogas.

Foi feita uma última tentativa de recuperação dos moços. Quando percebemos que estavam se envolvendo com traficantes, desistimos.

Passei a receber informações picadas dos irmãos. O Alex que, pela aparência parecia ser aquele com maior vocação para desvios, revelou-se um rapaz maduro, sério, que jamais se meteu com drogas. Já os gêmeos prosseguiram sua vida, de cabeçada em cabeçada. Ora vinham notícias de pessoas que os viram dormindo na rua, ou entrando em ônibus para pedir esmolas.

Foi o flautista Carlos Poyares, já falecido, que um dia me contou que Charles estava preso. Deu uma facada em alguém. Depois, foi libertado.

Agora está em uma dura luta pelo recomeço. De vez em quando, tem recaídas, mas consegue se levantar. Pensa em ter filhos, sabe que pode ser importante para ele. Voltou a praticar a flauta. Me conta que está tirando a valsa “Desvairada”, de Garoto, o “Primeiro Amor”, de Patápio.

Se tudo der certo, poderá ser um bom músico, um bom pai de família, seguindo o exemplo de Alex.
Mas o Charles da Flauta, o menino que despontava como sucessor de Altamiro, e como o futuro maior flautista do mundo, não existe mais. Que Deus salve o Charles Gonçalves do destino que fulminou o menino Charles da Flauta.

http://brazilianguitar.net/index.php?showtopic=1007

 

Folha.com – Cotidiano – Flautista pede ajuda contra o crack em avenida movimentada de SP – 11/08/2011

Flautista pede ajuda contra o crack em avenida movimentada de SP

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NATÁLIA CANCIAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O movimento do trânsito na avenida Roberto Marinho quase esconde o som da flauta de Charles Pereira Gonçalves, 37. Mas ele permanece até o fim da música. Quando termina, volta para sua “casa”, que fica em uma alça de acesso da avenida, um barraco montado com lona, toalhas e um colchão e que divide com sua namorada –ele prefere que o nome dela não seja divulgado.

Charles começou a tocar flauta aos dez anos. Chegou aos palcos depois que gravou um disco, aos 14. Chegou a ir para a Europa, em países como a Inglaterra e Holanda. Mas parou tudo aos 21, quando descobriu o crack. “Eu andava com más companhias”, diz.

Nesta semana, ele começa um tratamento no Caps (Centro de Atenção Psicossocial), depois de ser abordado por uma equipe da prefeitura e da Polícia Militar. E diz que quer sair das ruas. “Como vou fazer tratamento contra o crack e continuar perto das pessoas que usam?”.

LEIA O DEPOIMENTO DE GONÇALVES:
Rodrigo Capote/Folhapress

Flautista, Charles Gonçalves, 37, já gravou disco e fez concertos na Europa; usuário de droga desde os 19, está começando tratamento
Charles Gonçalves, 37, já gravou disco e fez concertos na Europa; usuário de droga, está começando tratament

Comecei a tocar flauta aos dez anos. Meu pai era músico, tocava violão de sete cordas e um pouco de flautinha. Eu e meu irmão tínhamos medo dele, então esperava ele sair para tocar. Um dia ele esqueceu a carteira em casa. Quando voltou, me pegou no flagra.

Eu tinha dez anos e já tocava “Brasileirinho”. Seis meses depois ele não tinha mais o que ensinar. E aí eu tive que aprender sozinho. Escutava Noel Rosa, Nelson Cavaquinho. Meu sonho era ser igual ao Altamiro Carrilho, um rei da flauta.

Com 14 anos eu, meu pai e meu irmão começamos a tocar no centro da cidade, para conseguir dinheiro e sobreviver. E aí apareceu um produtor que me convidou a gravar um disco.

O vinil, com 12 músicas, era um brinde a funcionários da Eletropaulo. Mas o buchicho foi tão grande que uma gravadora passou a comercializar. Era 1988. Até hoje eu não recebi os direitos autorais das 10 mil cópias vendidas.

Um ano depois eu comecei a ganhar prêmios e a participar de programas de TV. Cheguei a tocar em países como a Inglaterra e a Holanda. Em 1992 tudo isso parou.

Eu lembro do último programa que gravei na época, anunciando que eu tinha ganhado uma bolsa de estudos para estudar na Europa. Me despedi e disse que por um tempo não ia voltar. Mas a bolsa não saiu.

Nessa mesma época experimentei maconha. Eu andava com más companhias. Se eu negava, eles diziam “Ah, seu pai que é careta”. Dois anos depois, estava no crack.

A partir daí tudo ficou mais difícil. Cheguei em um estágio que não podia mais voltar para casa. Já morei na Vila Madalena, na Amaral Gurgel embaixo do viaduto, Itaquera… Estou aqui há cinco meses [em uma alça da av. Roberto Marinho].

Na rua você enfrenta de tudo. Tive problemas com a Justiça. Em todos os casos, foi pelo crack. Peguei sete anos e oito meses de prisão por tentativa de homicídio, assalto e porte de arma.

Em uma “saída”, do Dia da Crianças, me chamaram para tocar com uma banda. Fui ficando e acabei foragido. Até que um segurança desconfiou da minha imagem de malandro. E falou: “você tem talento, cumpre horário, mas precisa resolver seu problema com a Justiça”. Voltei e cumpri o que faltava. Desde janeiro não devo mais nada.

Mas aqui fora eu estou pagando o pão que o diabo amassou. Perdi duas flautas transversais de mais de mil reais que ficaram na delegacia, porque ninguém foi buscar. Quando saí da prisão, não tinha para onde ir.

Então voltei para a rua e acabava colando nessa região para fumar. Tenho uma namorada, que conheci pelo crack. Moramos juntos.
Mas não quero mais ficar aqui. Como vou fazer tratamento contra o crack e continuar perto das pessoas que usam? Quero um lugar para tomar banho, me vestir bem, ser digno.

No dia a dia eu durmo tarde e acordo cedo com a polícia metendo o pé no meu barraco. Eu toco flauta no farol para conseguir algum dinheiro. Também componho. Minha vontade é fazer algumas criações, misturar o som da flauta com o eletrônico.

O desejo de parar de usar crack já vem há bastante tempo. Quando me ofereceram o tratamento no Caps, eu aceitei na hora. Amanhã tenho consulta com a psicóloga e vou fazer um check-up, ver essa tosse que não para. Quero seguir em frente com o tratamento e meu trabalho.

Tenho um filho de cinco anos, que só vi uma vez. Preciso ser exemplo para que ele não vá para o mesmo caminho. Se você puder, escreve aí para me ajudar: “Ei, você que é empresário, há uma mina de ouro nas ruas”.

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Luis Nassif

Luis Nassif

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