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Entre “gostei” e “não gostei”, o gado é tangido, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Entre “gostei” e “não gostei”, o gado é tangido

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

 Theo de Barros e Geraldo Vandré disseram que “… porque gado a gente cria, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”. A história recente mostra que os autores estavam errados. As pessoas podem ser tangidas da mesma forma que o gado, só que, em vez de seres humanos montados a cavalo e munidos de chicotes de guia, temos entidades políticas  montadas em bancos de dados, brandindo algoritmos contra o povo travestido em gado. Apostando na ignorância da população no que concerne `tecnologia’, sempre que as empresas que detêm as redes sociais são confrontadas por favorecerem as ideologias de seu interesse, afirmam que tudo é feito conforme algoritmos e que eles têm vida própria, impossíveis de manipular. Será verdade?

Um algoritmo é uma fórmula ou um conjunto de fórmulas que dão resultado único. A fórmula de Báscara, que resolve uma equação de segundo grau é um algoritmo. O leitor pode dizer que são dois os resultados dela. Um matemático responderá que é um conjunto com dois elementos, validando a ideia de o resultado ser único. Ora, se a fórmula de Báscara oferece um conjunto com dois elementos, o que impede que um algoritmo ofereça um conjunto com milhares de elementos, baseando-se num banco de dados? Isso é o que se tem feito para classificar elementos de um conjunto desde o século XIX. A classificação dos alunos num vestibular é fruto de um algoritmo formado pelo número de respostas certas, prova a prova, multiplicado pelo peso de cada matéria, resultando na ordem decrescente de alunos em número de pontos. Quem estiver dentro do número de vagas é aprovado.

Imaginemos agora que o universo a ser classificado sejam as publicações no Facebook, ou no Youtube. Imaginemos agora que a rede social queira oferecer o de que o usuário gosta. Em vez do número de respostas certas, a variável principal seja o número de views. Imaginemos agora que um “gostei” multiplique o número de views por 5, seja para um usuário específico, seja para montar o panorama inicial para quem entre na rede pela primeira vez. No primeiro caso, sendo um usuário frequente, são os “gostei” que ele deu que comporão o algoritmo; caso contrário, será o número de “gostei” dado pelo conjunto de usuário. Se um gostei multiplicar o número de views por – digamos – 5, a publicação sobe no ranking, tendo probabilidade muito maior de ser mostrada; se um “não gostei” dividir o número de views por – digamos – 5, a publicação cai no ranking e a probabilidade de ser mostrada despenca.

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Digamos agora que o dono da rede social queira manipular os resultados. Serão inúmeras possibilidades, mas a forma mais simples é atribuir falsos “gostei” e “não gostei” às publicações, consoante a critérios que ele julga positivos ou negativos de acordo com seus interesses. Os critérios podem ser o canal em que a publicação foi feita, uma palavra ou conjunto de palavras, ou mesmo a menção de pessoas. Se for da emissora X, por exemplo, qualquer publicação pode partir de mil “gostei”; se for da emissora Y, pode partir de mil “não gostei”. Ao mesmo tempo, o nome do presidente pode valer um “gostei” e o nome de um candidato pode valer um “não gostei”. De uma forma ou de outra, a publicação sobe ou desce no ranking de acordo com os interesses dos donos das redes sociais, haja vista as acusações feitas por Brittane Kayser em seu livro “Manipulados”.

Não é preciso manter um programador de plantão para manipular esses conjuntos. Basta criarem-se painéis com formulários para que se adicionem os critérios, agilizando substancialmente a manipulação. O sistema pode, à luz da frequência com que novas ocorrências sejam apresentadas, perguntar, a algum meio de comunicação, ao interessado se aquilo é positivo ou negativo, tal que seus interesses não sejam contrariados.

Claro que o que aqui se apresentou é uma simplificação grosseira, mas dá uma ideia de como as pessoas podem ser manipuladas politicamente ou mercadologicamente. Tudo o que se mostrou é perfeitamente aplicável a produtos, induzindo os consumidores a adquirir essa marca em detrimento daquela. Trata-se da impulsão paga, como fazem o Google e o Facebook. Claro também fica o fato de o próprio governo poder impulsionar publicações que visem mantê-lo no poder, ou mesmo incutir aversão a determinados grupos ou práticas. De uma coisa estejamos certos, a volta à normalidade passa pelo restabelecimento da soberania digital. A internet não pode continuar sendo terra de ninguém, onde se trava a guerra de todos contra todos.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepauta@jornalggn.com.br.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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  • Nenhum instrumento foi inventado para não ser usado. Nem que seja com adaptação; quase sempre. Aproximadamente no ano 60 da nossa era Hero de Alexandria inventou sua Eolípila, que nada mais era que um eficientíssimo motor a vapor. Se passaram 1700 anos até que alguém viesse toscamente reinventá-lo. E começar a Revolução Industrial dando no mundo que hoje temos.
    E, quem tem o instrumento, vai usá-lo em proveito próprio. Pouco importa se um canivete na mão de um pivete ou um programa de computador na mão de um devoto de Ayn Rand.

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