Categories: CidadaniaNotícia

Cena banal – 06 de junho

Três da tarde. Em um dos calçadões do centro de São Paulo, sob um céu plúmbeo escondido pela marquise de uma loja fechada pela crise, enrolado em um cobertor cinza, dorme uma pessoa. Perto dela está parado um homem, moreno, negro – tenho dificuldade com nossa sutil paleta de cores humanas, útil para disfarçar nosso preconceito racial. Ao desviar a vista deles e olhar para meu caminho, me assusto ao me deparar com três militares vindo em minha direção. Rapidamente noto meu engano. Ao notar os três PMs se aproximando, o homem se vira e põe as mãos na parede – o outro seguirá dormindo até o momento que acompanho a cena. Não sei o que se passa dentro dele, mas a cena é um conformismo pavloviano: o cão que sempre apanhava depois do sino, passado um tempo começa a chorar só de ouvir o sino; passado outro tempo, não chora mais nem quando apanha. Um dos PMs já tirou a arma do coldre, carrega-a na mão. A subserviência daquela pessoa de nada serve: os policiais militares são rudes (afinal, olha a cor, olha a roupa, olha os modos): as mãos são cabeça, não na parede. Fica evidente que não há ali respeito à lei: o homem não teme um processo, a prisão, a pena por algum crime; o que teme é a arma na mão daquele que se diz garantidor da lei e da ordem: ele sabe, por ser preto pobre periférico, que se não baixar a cabeça e se mostrar temeroso e servil pode apanhar (como o aluno na escola pública de Alagoas [http://bit.ly/2rIEJhU]), ser preso por desacato (quem sabe por tráfico, se for muito arrogante [http://bit.ly/2sPcEEP]), ou morrer num auto de resistência, mesmo que nunca tenha encostado em uma arma de fogo e em um baseado. A exemplo de tantas abordagens dos militares a pessoas negras, humildes e periféricas que tenho presenciado ultimamente, provavelmente nada encontrarão com aquela pessoa, que será dispensada depois de toda a humilhação, mas a abordagem contará pontos no índice de produtividade dos PMs, no seu duro combate ao crime. Pouco adiante, vejo outra cena corriqueira: um homem corre atrás de outro gritando “pega ladrão”. Não pegaram: a PM estava ocupada combatendo os pobres.

06 de junho de 2017

Redação

Redação

Recent Posts

Governo Federal anuncia repasse de recursos ao RS pela Defesa Civil

Prefeituras e governo estadual poderão cadastrar no sistema demandas para recuperar escolas, creches, hospitais, unidades…

5 minutos ago

Tirem as mãos da Previdência!, por Paulo Kliass

Lula ainda tem tempo para reconsiderar as opções do neoliberalismo que insistem em tomar conta…

1 hora ago

Orçamento de 2025 pode tirar R$ 600 milhões de verbas da Fapesp

Emenda constitucional prevê desvinculação de até 30% das receitas dos Estados, que podem destinar recursos…

1 hora ago

“Os civis já não sofreram mortes e destruição suficientes?”, questiona chefe da ONU, após Israel fechar passagem de ajuda humanitária em Gaza

Israel afirmou que assumiu o “controle operacional” da passagem de Rafah, na fronteira com o…

2 horas ago

Eleitores têm até amanhã para regularizar e transferir título eleitoral

Prazo para atualização de título acaba amanhã para votar nas eleições municipais de outubro de…

3 horas ago

Por que estamos em greve nas Universidades Federais?, por Graça Druck e Luiz Filgueiras

Esse é o quadro das Universidades Federais que levaram à deflagração da greve dos docentes…

4 horas ago