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Formas Diversas de Sentir

Rubem Braga (12/01/2013 – 19/12/1990)
O escritor notabilizou-se por desenvolver, com lirismo, uma atmosfera de cumplicidades

  Afinidades eletivas. No apartamento de Rubem, no Rio, na década de 60: Paulo Mendes Campos,

  ele, Fernando Sabino e José Carlos Oliveira (em pé); Vinícius de Moraes e Sérgio Porto (sentados);

  Chico Buarque de Holanda (deitados

  Em 1936 Rubem Braga lançou seu primeiro livro, O Conde e o Passarinho, cujo título remete à crônica homônima, publicada em fevereiro de 1935. Leiamos seu princípio:

“Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho). Ora, aconteceu também um passarinho. No parque havia um passarinho. E esses dois personagens – o conde e o passarinho – foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo. Devo confessar preliminarmente que, entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência”.
Essa longa citação esclarece os principais elementos da literatura de Rubem Braga. De um lado, a transformação do cotidiano em matéria potencialmente lírica; lirismo presente no título da crônica. É um lugar-comum observar que o estilo de Braga, empregando uma prosa refinada, traduz eventos prosaicos em epifanias inesperadas. A afirmação é correta, mas deixa escapar o procedimento decisivo na caracterização de sua crônica. Repare-se na sutilíssima descrição: em primeiro lugar, surge o nobre, sem nenhum qualificativo, imponente pela simplicidade: “Conde Matarazzo”! O narrador logo baixa o tom, esclarecendo, como se revelasse um segredo, a fragilidade do personagem: “O Conde Matarazzo é um Conde muito velho (…)”. Envelhecido, o Conde ainda tem muitas posses e, por isso, recebe honrarias. Então, o uso aparentemente casual do diminutivo antecipa o desfecho da crônica: “uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha”. Ora, da imponência do Conde à modéstia da medalhinha, o jovem cronista produz um radical deslocamento, que poderia desorientar o leitor, assim como perturbou o Conde, ao ver sua condecoração ser levada pelo passarinho!
Contudo, em lugar da desorientação, o leitor se instala no território definidor da prosa do cronista, tornando-se cúmplice de seu olhar. Cria-se, assim, uma atmosfera especial, suspendendo a lógica e os juízos habituais: “Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência”. De outro, a ausência de explicação joga um papel estruturante na economia dessa prosa poética, fundamentalmente despretensiosa. O leitor da crônica não está preocupado com a “opinião” do escritor sobre este ou aquele assunto. Tal atitude define a leitura do texto de um colunista, cujo ponto de vista deve ser fundamentado, podendo ser apreendido argumentativamente pelo seu público. Hoje em dia, é o caso das colunas de Roberto DaMatta e Silviano Santiago. Esse era o modelo seguido por Daniel Piza. O colunista, portanto, defende opiniões expressando um ponto de vista determinado; tão importante quanto seu olhar é a informação que ele apreende e transmite.
Rubem Braga se notabilizou por desenvolver uma voz lírica criadora de uma atmosfera. Stimmung, dizem os alemães, e é disso que se trata: uma voz (Stimme) que gera uma ambiência que literalmente envolve o leitor. É importante frisar que a alquimia da crônica apenas potencialmente transmuda o fato prosaico em contexto poético: sua fruição exige uma leitura que consiste em fechar os próprios olhos, a fim de entender o mundo através do olhar do cronista. Rubem Braga, portanto, inventou um olhar que é, ao mesmo tempo, a informação mais preciosa para o leitor. Aqui se destaca a reveladora frase de Tonia Carrero, a grande paixão do cronista. Marco Antonio de Carvalho resgatou a preciosa tirada em sua biografia Rubem Braga – Um Cigano Fazendeiro do Ar. A atriz teria dito, “extasiada, depois de ler a crônica matinal do amigo: ‘Existe alguém mais necessário à nossa vida do que Rubem Braga’?”. O subtítulo da biografia, Fazendeiro do Ar, alude a Carlos Drummond de Andrade. Porém, como observou Davi Arriguci Jr., o grande estudioso de Rubem Braga, a afinidade eletiva do cronista seria antes com o poeta Manuel Bandeira, pois ambos enraizaram sua literatura na valorização do cotidiano, na elaboração da palavra humilde, no predomínio do tom menor. A cumplicidade que conseguem criar com essa atmosfera ajuda a entender a permanência de suas obras.
Ressalte-se que, ao escrever O Conde e o Passarinho, Rubem Braga era um jovem jornalista de apenas 22 anos. Caso raro: já em seu primeiro livro, o cronista se apresentava como um escritor maduro, o autor responsável por tornar a crônica uma obra de arte, o único que pode ombrear com Machado de Assis nesse terreno. E desde seus primeiros exercícios no gênero, ele demonstrou mão de mestre. De fato, em sua vasta bibliografia não se percebe exatamente uma ruptura com a dicção das primeiras crônicas, mas um aperfeiçoamento e ampliação constantes. Com o passar dos anos, ele adicionou um veio memorialístico, porém, sem concessões ao traço monumentalizante que às vezes define o gênero das memórias. Recordem-se os textos de Recado da Primavera. A crônica que dá título à coletânea, uma homenagem ao primeiro aniversário da morte de Vinicius de Moraes, foi escrita para a televisão. Outros amigos são lembrados, em geral através de uma prosa tão carinhosa quanto dessacralizadora.
Entre tantos nomes de destaque, Gilberto Freyre comparece como o ainda jovem autor de Casa-Grande & Senzala, na véspera de concluir sua segunda obra-prima, Sobrados e Mucambos. Não é o consagrado sociólogo que emerge do texto, porém o defensor, por assim dizer, muito ativo da miscigenação: “A certa altura Gilberto Freyre sumiu e, depois de muito procurar, Cícero Dias e eu fomos até a estação: lá estava ele, preso por um sargento, pois atentara contra o pudor público fazendo amor com uma jovem mulata no capim de uma trincheira”. Em ensaio célebre, Instinto de Nacionalidade, Machado de Assis propôs: “O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo (…)”. Na crônica O Chamado Brasil Brasileiro, Rubem Braga retomou o tema, impondo-lhe uma torção muito significativa: “O Brasil é, principalmente, uma certa maneira de sentir”.
A sintomática transformação ajuda a caracterizar sua literatura: em lugar do substantivo, sentimento, Braga lança mão do verbo, sentir. É que o seu mundo nunca foi dominado por princípios e pressupostos, mas por formas diversas de sentir. Daí o paradoxo que explica a força de sua obra. A crônica depende intrinsecamente do jornal – meio definido pelo triunfo do transitório. Contudo, o olhar de Rubem Braga descortina um horizonte que permanece atual, imune ao império do efêmero. Acontece que esse olhar bem poderia ser definido com as palavras de uma de suas crônicas, Quermesse, de junho de 1951: “De repente, os barris de chope começaram a produzir champanha”.
O bom vinho resiste ao teste do tempo. Por isso, as crônicas do velho Braga continuam sendo a melhor safra do gênero na literatura brasileira. Fonte: O Estado de S.Paulo – 12/01/2013 JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO (UERJ) – O Estado de S.Paulo
Redação

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