Por um PAC do desenvolvimento local

Sem grande medo de errar poderíamos classificar os governos Lula/Dilma com os enormes avanços que vem trazendo ao Brasil, como experiências construídas na interface improvável do consenso entre dois conceitos irreconciliáveis de Homem. Esses conceitos estiveram circunstancialmente alinhados na presente quadra histórica em decorrência de uma desatualização completa de um e de outro, com implicações claras para a economia e para a sociedade. De fato, o estado de precariedade humana do Brasil era tanto, há tão somente doze anos, que soldou o consenso pelo qual seriam formados cidadãos mais emancipados e trabalhadores mais eficientes.

O primeiro conceito a influir na materialização das políticas públicas dos últimos doze anos é o do homem como cidadão de direitos, que inclui como sujeito beneficiário das políticas públicas as grandes massas de excluídos, credores históricos de uma inclusão social que foi iniciada.

O segundo conceito é o de  homem como peça da engrenagem econômica, peça que deve ser melhorada para que proporcione ganho de eficiência da economia, sobretudo do setor privado.

Os dois conceitos são irreconciliáveis, por óbvias razões, o primeiro emancipa o segundo submete. Isto não significa porém que a eficiência do trabalho deva ser negligenciada, mas ajuda a entender as razões pelas quais um programa como o Pronatec, crucial aliás para a atualização profissional do povo brasileiro, emerge sem que nada da mesma magnitude exista em áreas não técnicas. Ajuda a explicar porque o Ciências sem Fronteiras atribui o privilégio da internacionalidade a estudantes de Ciências Exatas e Tecnológicas, mas não para os das Humanidades, ajuda a explicar porque há recursos fartos para pesquisa e inovação, mas não para dar dignidade às prisões ou as Casas de Longa Permanência de Idosos. Grande parte do que escapa desse consenso de intrerface entre cidadãos e peças de engrenagem produz como que um vazio, um deserto de políticas públicas. Forma-se a um só tempo o cidadão e a peça da engrenagem.

Denominei, no último artigo que postei por aqui, de Neoliberalismo Social essa fase em que estamos, que produz esse sagitário, meio homem, meio animal de carga.

Simultaneamente vamos sentindo que os espaços para este frágil consenso estão em claro e indiscutível declínio, a direita, até pelos riscos que antevê com os níveis crescentes de emancipação popular, entende que o grande ciclo de aperfeiçoamento da peça da engrenagem já deu o que tinha que dar e é hora de parar.

Na Câmara Federal, por exemplo armam-se propostas de restrição da soberania popular, limitação da reeleição e do voto obrigatório. O jornal O Globo em editorial recente sinalizou que já estava de bom tamanho o aumento regular do salário mínimo e, apesar da provável reeleição da presidenta Dilma na próxima eleição, a direita já se prepara e já anuncia o fim da era petista em 2018…

Enfim, tudo vai sendo movido para a clara a inevitável sinalização de que o casamento dos conceitos irreconciliáveis chegou ao fim.

Um dos filhotes desse sagitário, e é um filhote bem cevado, é o Programa de Aceleração de Crescimento, o PAC, o grande construtor de infra-estruturas, elemento que cumpre papel similar ao do homem peça de engrenagem: dar eficiência e competitividade à economia, permitindo ao Brasil produzir mais e melhor. E quem pode criticar tão necessário e nobre propósito, que afinal ajudará a por na mesa dos mais pobres uma comida possivelmente menos cara…

Apesar disto o programa não é emancipatório no sentido do outro conceito de Homem: o magrinho cidadão de direitos. Que PAC atenderia então a esse conceito, devolvendo um pouco de equidade aos dois lados?

Estamos num interessante momento em que as nossas estradas estão cada vez melhores, nossos portos e aeroportos serão melhorados, haverá mais energia elétrica de todas as matrizes e produziremos petróleo à vontade. Nos bairros onde as pessoas vivem e moram, entretanto, a Escola Regular continua precária, as Quadras Desportivas estão caindo aos pedaços, não há Escolas de Música ou de Dança, nem Teatros, as Associações de Moradores se reúnem em locais precaríssimos e não se antevê quando os bairros poderiam ter locais adequados para as suas reuniões cidadãs. Faltam Centros de Velório o que obriga as pessoas a velar seus mortos muitas vezes em casa, as Piscinas Públicas são raras, o que dizer das Bibliotecas e o Transporte Coletivo, privado e com preços escorchantes, continua impedindo as pessoas que não têm acesso a tudo isto no seu entorno a ir em busca em outros lugares.. Cheque mate.

O homem peça de engrenagem alimentado pelo tecnicismo e por um entendimento do desenvolvimento como “infra-estrutura” está devorando o homem cidadão de direitos e o desenvolvimento como qualidade de vida e emancipação. A máquina come o homem.

A hora agora é a de um PAC do desenvolvimento local. Capaz de mudar de forma profunda a vida das pessoas onde elas vivem e moram, construindo um ambiente onde possam crescer interiormente e emancipar-se.

Por acaso esta é também a pista para que o ciclo de poder da esquerda não decline. É hora de levantarmos a cabeça para fazer saber a quem interessar possa que o que está em declínio não é a década de poder popular, mas o Neoliberalismo Social, que dará lugar a próxima etapa em que estaremos, construindo a nossa casa.

O PAC do desenvolvimento local é o fim do ciclo do Sagitário, é também a Caixa de Pandora da direita. Abramo-la.

 

 

 

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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