Um jovem com uma caixa de engraxate

Numa cantina quase chegando em casa, vejo um rapaz – dezesseis, dezoito anos – com uma caixa de engraxate. Há tempos não via cena assim – parece que no século XXI essa caixa com graxas havia sido substituída por “caixas” com livros e canetas. Me veio uma lembrança, uma sensação de infância, fim dos anos 1980, início dos anos 1990, um tempo de inocência – para mim. Um época inocente quando crianças de dez anos saíam pelas ruas da cidade oferecendo para engraxar os sapatos da classe média, e se dizia que isso contribuía para seu crescimento, para a formação do caráter – sacrificar a infância e os estudos e aprender em troca a estar sempre de joelhos aos que mandam. Talvez me soe inocente aquela época porque eu era inocente – criança classe média numa pequena cidade do sertão paranaense. Mas quando lembro de coisas de meus pais, ou dos adultos da época, essa inocência persiste: andar de carro sem cinto, ou na caçamba da picape, Xuxa e suas paquitas supersexualizadas entretendo as manhãs infantis, entrecortadas por propagandas que induziam as crianças a fazer chantagem com os pais para conseguir consumir o que eles queriam (eles os anunciantes), os humorísticos família que reforçavam esteteotipos e preconceitos aos cidadãos de bem, estimulavam a rir da desgraça alheia e reafirmavam sua inferioridade congênita de negros, nordestinos, mulheres e gays; e as novelas que educavam todos a como se comportarem como “ricos”, paradigma para uma classe média inculta e tosca, adestrada pela tevê para seguir assim, bruta e esteita, mas se achando cosmopolita e chique, distante da ralé brasileira. Tempos de uma inocência onde cada um sabia seu lugar e os do topo da pirâmide – ainda escorados na pedagogia de chumbo – nos ensinavam que isso era harmonia social e democracia racial. Um tempo inocente que muitos hoje lamentam e tentar forçar o tempo a andar para trás, sem politicamente correto, sem ideologia de gênero, sem essa coisa de homem com homem e mulher com mulher, sem isso de justiça se meter em briga de casal, sem negros usando jaleco e estetoscópio, sem doméstica cobrando salário – afinal, é praticamente da família, come e dorme na casa, não precisa ganhar mais que uma gorjeta para os dias de folga, se tiver uma boa patroa que lhe dê dia de folga. O rapaz com a caixa de engraxate me fez imaginar qual terá sido o futuro de tantas crianças que vi em minha infância com esse mesmo instrumento de trabalho e formação cidadã. Ouso afirmar que dificilmente um deles se tornou alguém na vida – ao contrário das crianças que quando contrariadas enchiam o peito para falar “sabe quem é meu pai?” -, provavelmente os adultos que hoje são devem ser taxados de “vagabundos”, “bandidos”, “marginais” pelos cidadãos de bem que viam na caixa de engraxate um benfazer àquelas crianças, seu despertar para o futuro – enquanto seus filhos estudavam nas melhores escolas particulares da cidade e passavam as tardes a brincar despreocupadamente do futuro. Talvez hoje esses adultos só encontrem uma resposta para seu desamparo em religiões que prometem uma vida como aquela das novelas, ao custo do dízimo e de seguirem o script: passarem desde já a imitar os ricos da tevê, chamando de vagabundos, bandidos e marginais seus vizinhos, e sonhando dos bons tempos que eram os anos 1980. As crianças com caixa de engraxate da minha infância – início da redemocratização – viviam em um tempo inocente, de uma inocência prenha de um futuro roto – cujas tentativas de remendo (já neste século) foram tímidas diante das fissuras gestadas.

12 de abril de 2018

PS: um pouco depois cruzo com três policiais militares, que conversam tranquilamente na noite aprazível. Pego um pedaço da conversa, um deles escarnece, enquanto os outros dois gargalham: “…vou denunciar o genocídio da população negra…”. Não sei, não entendi: não vejo graça em assassinatos, talvez por não ser militar.

Redação

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