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Underground, aqui e agora

Já disse aqui que o novo PMDB é pior que a antiga Arena https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-novo-pmdb-e-pior-que-a-antiga-arena-por-fabio-de-oliveira-ribeiro e que existem diferenças políticas https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/nao-veras-brasil-nenhum-por-fabio-de-oliveira-ribeiro  e econômicas https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/1964-2016-semelhancas-e-diferencas-economicas entre 1964 e 2016. Hoje me aprofundarei um pouco mais sobre o próprio golpe de 2016.

Num dos momentos mais inspirados do seu livro A Condição Humana, Hannah Arendt afirmou que:

“O espaço de aparência passa a existir sempre que os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação, e portanto, precede toda e qualquer constituição formal da esfera pública e as várias formas de governo, isto é, as várias formas possíveis de organização da esfera pública. Sua peculiaridade reside no fato de que ao contrário dos espaços fabricados por nossas mãos, não sobrevive à realidade do movimento que lhe deu origem, mas desaparece não só com a dispersão dos homens – como no caso de grandes catástrofes que destroem o corpo político -, mas também com o desaparecimento ou suspensão das próprias atividades. Onde quer que os homens se reúnam, esse espaço existe potencialmente; mas só potencialmente, não necessariamente nem para sempre.” (A Condição Humana, Hannah Arendt, editora Forense, Rio de Janeiro, 10ª edição, 2008, p. 212)

Um pouco adiante ela assegurou que:

“…o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para casos de emergência, como os instrumentos de violência: só existe em sua efetivação. Se não é efetivado, perde-se; e a história está cheia de exemplos de que nem a maior das riquezas materiais pode sanar essa perda. O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (A Condição Humana, Hannah Arendt, editora Forense, Rio de Janeiro, 10ª edição, 2008, p. 212)

Três coisas crescem doentiamente no Brasil desde o advento do Mensalão. A primeira é o abuso dos membros do MPF que fazem denuncias com base em convicções e não lastreadas em evidências que sugerem a materialidade do crime e sua autoria. A segunda é o arbítrio judicial, evidenciado pela prisão preventiva de José Dirceu que só foi revogada dois anos depois de imposta como um meio de tortura para a obtenção da delação de Lula. A terceira é a violência política, a criação de milícias para matar índios, sem terras e agredir estrangeiros.

O poder, ou melhor, o simulacro do poder, parece estar fascinando complemente os promotores, os juízes e os milicianos de direita. Enquanto eles destroem os resquícios de civilidade (a canetadas, pauladas, facadas e tiros) vai crescendo o abismo entre a letra da Lei e a realidade de sua ineficácia nas ruas e dentro dos Tribunais. O que estava limitado à esfera pública (a impunidade dos políticos e juízes corruptos é um fato histórico no Brasil) se espraia pela esfera privada onde índios e sem terras são massacrados por milicianos de direita (mais ou menos tolerados pelas autoridades policiais).

A política não é mais um espaço onde novas realidades e relações são criadas. Ela se tornou o inferno onde algumas relações antigas são destruídas para que outras sejam preservadas. Não temos mais direitos sociais e logo uma geração de brasileiros começará a crescer sem educação e saúde. Os direitos trabalhistas estão sendo revogados, mas foram preservados os direitos dos empregadores de punir e de mandar seus empregados embora por justa causa. Os direitos previdenciários dos trabalhadores serão revogados, os privilégios previdenciários de militares, juízes, governadores, deputados, procuradores e promotores não foram sequer discutidos.

A única coisa que está sendo feita em Brasília é a destruição do poder e não sua efetivação. Portanto, ao Estado, que está sendo totalmente divorciado da população brasileira, só irão restar os instrumentos reais de violência: soldados e máquinas de mutilar e matar cidadãos transformados em servos sem quaisquer direitos. O resultado não será igual e sim pior àquele que foi produzido após o golpe militar. A idéia de nação foi brutalmente reforçada pelo golpe de 1964 e será inevitavelmente destruída pelos arquitetos e operadores do golpe de 2016.

Erramos. Sim. Erramos todos. Errou o PT ao imaginar que poderia governar mediante a conciliação de classes. Erraram os golpistas imaginando que o Judiciário poderia ser uma reserva de poder enquanto o obrigava a destruir sua credibilidade e todo o sistema jurídico que garantia um mínimo de civilização num país tão heterogêneo. Erraram os empresários, que pensam no lucro fácil obtido mediante a espoliação de empregados que já começaram a resistir. Erraram os juízes e promotores que se colocaram a serviço da barbárie das exceções e novidades extra-legais, meta-legais e ilegais, como se elas fossem melhores que a civilizada aplicação das regras válidas longamente meditadas pela jurisprudência e pela doutrina. Errou a OAB ao apoiar um golpe de estado que vai se consolidando mediante a violação das prerrogativas dos advogados e do crescimento da censura e da violência policial.  E erraram os operários também ao votar em Deputados e Senadores que não representam ninguém a não ser a si mesmos.

Não conseguimos viver juntos, não conseguiremos afundar separados. À medida que o país destrói seu poder e entrega suas riquezas à sanha da exploração internacional, o próprio Estado acabará entrando em colapso. Primeiro porque a arrecadação decresce e a sonegação aumenta. Segundo porque sua fragilidade interna (nenhum Estado consegue sobreviver apenas como um exército de ocupação num território em que a idéia de nação se perdeu ou foi destruída) abrirá caminho para as aventuras militares das potências que estão sempre inclinadas a usar a força ao invés da diplomacia.

Os deputados, senadores e o próprio usurpador se comportam como se estivessem no topo do mundo exercendo um poder incontestável. Não poderiam estar mais enganados. Além de desonestos, criminosos, traidores e medíocres, os arquitetos do golpe são também ignorantes. Incluirei neste rol os jornalistas, que em breve começarão a ser despedaçados no território sem Lei, sem Justiça e sem Governo que eles mesmos criaram.

Dei a este texto o nome do filme de Emir Kusturica, pois nenhuma outra obra cinematográfica recente foi capaz de registrar, representar, decompor, problematizar e discutir de forma tão sarcástica o processo de destruição de uma nação: a Iugoslávia. A mesma decomposição pode ser vista aqui e agora no Brasil. Aqueles que não a conseguem ver foram cegados pela imprensa ou são apenas mal intencionados. 

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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