E quem julgará os que acusaram Cancellier e Marisa Letícia?, por Djefferson Amadeus

do Empório do Direito

O suicídio do Reitor da UFSC e a morte de Marisa Letícia: quem julgará seus acusadores?

por Djefferson Amadeus

Este é um duro (ou seria melhor dizer: duríssimo!); daqueles que não gostaríamos de escrever, mas, ao lembrar de Warat, não conseguimos nos conter. Porque o ato mais obsceno da vida – dizia Warat – é o ocultamento do terror que sustenta a aparência democrática”[1] e o silêncio daqueles que, sabendo disso, mantêm-se inertes!

Tenho certeza que, após este texto, corro um grande risco de ser “condenado” e, tal como Sócrates, sentenciado ate à morte; mas os que me condenarão também serão condenados e, segundo penso, a uma pena muito pior. Esperarei minha pena; eles, a deles.  Mas só os nossos “travesseiros” saberão a quem caberá o melhor quinhão.

Pois muito bem.

Para falar do suicídio do Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, e da morte de Marisa Letícia, esposa do Ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva, elegi dois livros: Las Miserias del Proceso Penal e Os Miseráveis. O porquê da escolha depreende-se da pergunta de Carnelutti, feita em 1959, que consta daquele livro:

 “Considerar al hombre como uma cosa: puede haber uma fórmula más expressiva de la incivilidad?”[2]

Na atual conjuntura, um tanto quanto em todas as partes, mas principalmente na boca da maioria daqueles que acusaram e julgaram Luiz Carlos Cancellier e Marisa Letícia, a palavra de ordem tem sido uma só: moralização. O resultado, por evidente, não poderia ser outro senão aquele vislumbrado por Galeano: “O código moral do fim do milênio não condena a injustiça, mas sim o fracasso”.[3]

Por isso, o Coronel McNamara, quando perguntado se a Guerra do Vietnã era um erro, respondeu que sim. Mas não pelo fato dela ter levado ao extermínio de mais de três milhões de pessoas, e sim porque os Estados Unidos levaram adiante uma guerra, mesmo sabendo que não a ganhariam.[4]

E assim, ao se deparar com a terceira ou quarta posição no ranking mundial da população carcerária, muitos juízes e promotores, que deveriam ser invadidos por um sentimento de vergonha e culpa, só conhecem o fracasso; fracasso pelo fato do Brasil não ocupar o primeiro lugar desta lista.

Analisando o atuar daqueles que são regidos pelo pensamento do “prendeu, prendeu, que bom que não sou eu”, fui tomado de assalto por uma passagem marcante da obra “Os Miseráveis, de Victor Hugo.[5]

A história se passa com um miserável que, pelo amor à sua esposa e seu filho, ao vê-los tomado pela miséria, decidiu fabricar dinheiro falso. Nessa época, a pena para tal crime era a morte. Mas, diante da miséria, num ato de desespero, sua mulher decide trocar a primeira moeda que seu marido fabricara. É descoberta. E presa. Só havia provas contra ela. Mas o Promotor do rei queria a prisão dela e do marido. Então teve uma ideia: juntou fragmentos de uma carta e, ardilosamente, forjou a ideia de que o marido dela estava traindo-a. Ela, tomada pelo ciúme, delata-o. E marido e mulher são condenados à morte. Enquanto o Promotor do Rei vangloriava-se de suas habilidades que o levaram a descobrir a “verdade real”, o Bispo, que ouvia tudo calado, perguntou:

– Onde serão julgados esse homem e essa mulher?

– no Tribunal do Júri, responderam a ele.

 E, com uma voz alta, redargüiu:

 – E onde será julgado o Promotor do Rei?

Assim fica fácil perceber, por exemplo, porque – e mais do que nuca – se faz importante (para não dizer imprescindível) que indaguemos o seguinte:

E quem julgará todos que acusaram Luiz Carlos Cancellier e Marisa Letícia?

Têm razão Calligaris e Jacinto Coutinho, quando afirmam que o país sofre de alguns déficits fundamentais que, enquanto não forem resolvidos, nenhuma política econômica salvará. Porque não há política econômica que se sustente onde não existe alteridade e fraternidade.

Enquanto escrevo, algumas lembranças invadem minha mente de forma brutal. Por todas, cito o olhar que Lula dirigia a mim, na UFRJ, no dia em que lançávamos o livro: Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula. Enquanto o professor Afrânio falava de sua filha, eu e Lula chorávamos. Mas por alguns segundos, enquanto nos olhávamos, chorando, percebi que o olhar de Lula parou de me alcançar. E tornou-se opaco. Como se estivesse perdido. E, por um instante, olhando-o, veio a lembrança de Pedro Ramos e Hogo Alves; e deles lembrei-me de como me olharam quando lia para eles a decisão condenatória.

Nunca vi um zumbi, mas como no relato de Calligaris, também acho que, se um dia deparar-me com algum, aposto que ele deve ter aquele olhar, que por muito tempo impediu-me nas feiras de voltar, porque toda vez que um peixe posto à venda lançava em mim o seu olhar, aquelas lembranças insistiam em retornar.

Há de se concluir, porque já se foi ao longe para as singelas pretensões iniciais. Então à pergunta – Reitor da UFSC e a esposa de Lula: o que eles têm que os seus algozes não têm? –, a resposta é evidente: dignidade! E coragem, muita coragem.

Por isso encerro este texto com uma frase de Dona Marisa Letícia:

“Em 1980, tomaram o sindicato da gente com a intervenção. Não tínhamos para onde ir. Desocupei a sala da frente e disse: pronto, aqui é o sindicato.”


Notas e Referências:

[1] Warat, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Trad. Vivian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 46.

[2]Tradução: Considerar o homem como uma coisa: pode haver uma fórmula mais expressiva da incivilidade?CARNELUTTI, Francesco. Las Miserias Del Proceso Penal. Traducción de Santiago Sentis Melendo. Ediciones Juridicas Europa-America: Buenos Aires, 1959, p. 15.

[3] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999, p. 33.

[4] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999, p. 34.

[5] HUGO, Victor-Marie. Os Miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Martin Claret: São Paulo, 2014. p. 53.


Djefferson Amadeus é Mestrando em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ). Pós-Graduado em Filosofia (PUC-RJ). Pós-Graduando em Ciências Criminais (UERJ). Pós-Graduando em Processo Penal (ABDCONST). Membro da Comissão de Direito à Educação da OAB-RJ. Coordenador do Grupo de assuntos Penitenciários da Comissão de Direito à Educação OAB-RJ. Advogado.  


Imagem Ilustrativa do Post: The sun in my hands // Foto de: Vincepal // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/vincepal/3083283650

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  •  
    Esses algozes assassinos

     

    Esses algozes assassinos são sustentados pela classe média fascista e pela chmada "grande" mídia.

  • O Brasil no mundo

    O Brasil perdeu só uma colocação no ranking mundial:

    De terceiro mundo para quarto mundo.  O último.

  • Quem julgará os acusadores de
    Quem julgará os acusadores de Marisa Letícia? Resposta: Sérgio Moro. Afinal o maior acusador de Marisa é Lula que tenta jogar sobre ela todas as culpas dele.Detalhe do artigo que não pode passar despercebido: No filme os miseráveis o marido era culpado.

  • Esta pergunta pressupõe
    Esta pergunta pressupõe inocência de Marisa Letícia, daí subentende-se que ela já foi julgada e declarada inocente. Mas, quem a julgou? Quem a inocentou?

    • Juízo Final

      Caríssimo,

      na forma do Artigo 107, inciso I do Código Penal Brasileiro,

      "com a morte do réu , extingue-se a punibilidade do fato criminoso que lhe é imputado"

      É certo que alguns juizes se acham deuses,  mas os mortos, por mais que esses juízes queiram,  só poderão ser chamados a juízo DIVINO, no fim do mundo, no DIA DO JUÍZO FINAL.

  • Poder pelo Poder
    O que matou Marisa, o Reitor, Celso Daniel e outras vítimas do lulofascismo é a luta pelo Poder sem medir consequências. As regras democráticas não valem para aqueles que querem o Poder pelo Poder. O Poder acabará matando Lula, seja de um câncer que lhe corrói a alma, o ódio pelos verdadeiros trabalhadores, que contribuem para o desenvolvimento do país;ou pelo ostracismo político, pelo fim do sonho de ver esse país uma republiqueta subordinada ao paraíso cubano ou venezuelano.

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