Sobre heróis e cidadãos: o holocausto brasileiro, por Vilma Aguiar

Sobre heróis e cidadãos: o holocausto brasileiro, por Vilma Aguiar

A degradação do meio ambiente no Brasil faz parte de seu modelo de desenvolvimento. Nas últimas décadas, a exploração selvagem  de minérios, o agronegócio com sua voracidade por novas fronteiras agrícolas, aliada à monocultura, o uso praticamente exclusivo de meios de transporte baseados em carros e caminhões, a condenação de extensas áreas florestais alagadas por usinas hidroelétricas etc. são signos inequívocos disso. Sucessivos governos usaram o capital ambiental brasileiro como se este fosse infinito.

Ao que parece, a conta dessa política predatória está chegando. E justamente no momento em que a preservação do meio ambiente se torna um valor universal, em face das evidências de que a vida tal qual a conhecemos neste planeta está em risco. É o pior cenário possível para o país. Tornar-se um vilão internacional, caminhando a passos largos para se tornar um pária.

No Brasil, que assiste impassível à destruição de seus direitos previdenciários e trabalhistas, o holocausto ambiental, para usar os termos de Marina Silva, é a cereja do bolo das ruínas que estamos construindo. Sim, porque ruínas também se constroem. A lama tóxica que submergiu comunidades inteiras em Mariana e Brumadinho, deixando atrás de si milhares de mortos, incluindo pessoas, animais, bosques e rios, são ruínas construídas. As dezenas de centenas de quilômetros quadrados de florestas e cerrados queimados também são ruínas construídas. Assim como o são as comunidades submersas de Belo Monte.

Como a destruição parece ser implacável,  agora são as praias do Nordeste as atingidas. O maior patrimônio turístico brasileiro, o lar e os meios de trabalho de  milhões de pessoas tingidos de lama negra. Mais de 200 localidades, mais de 2.200 km de costa. Um legado de décadas de intoxicação das águas, da fauna e da flora marítimas. É mais que triste; é desesperador. Assim como é desesperador ver a completa omissão das autoridades diante de um desastre dessa dimensão. O governo federal sequer acionou um protocolo conhecido para situações como essas. Bolsonaro apenas aproveitou a situação para dar mais um lance em sua guerra ideológica particular, atacando imediatamente a Venezuela e repetindo como um autômato que o óleo não é nosso. Como se isso diminuísse a morte que se espraia pelo litoral e seus ecossistemas.

Há quem veja poesia e patriotismo nos voluntários que estão lutando contra o petróleo cru, munidos de suas mãos e braços. Eu vejo o desamparo e o desespero de pessoas cujos  lares estão sendo invadidos pelo terror. Estas se transformam em um espécie de Dom Quixote pós-moderno, cujo monstro a ser combatido é real mas cujas armas são imaginárias. Porque as armas reais só o Estado possui.

Entretanto, se é verdade que os  voluntários que trabalharam nos resgates de corpos em Minas ou que limpam as praias do Nordeste parecem reconhecer a inoperância e mesmo ausência do Estado, sua ação heroica, sua saída individualista, mesmo quando  aparentemente é a comunidade que se reúne, permite que esse mesmo Estado se demita de suas obrigações. Dessa forma, o governo federal pode continuar a ignorar o desastre porque, vejam que lindo, as pessoas estão cuidando do assunto.  São os heróis anônimos brasileiros.

Talvez sejam heróis, mas precisamos mais de cidadãos que de heróis.

Ouso afirmar que seria muito mais efetivo se essas mesmas pessoas estivessem quebrando vidraças de bancos, incendiando carros e gritando diante dos parlamentos e das sedes de governo. Ou melhor, que todos nós estivéssemos fazendo isso. As revoltas no Chile e as dos coletes amarelos na França, por exemplo, obtiveram respostas que nenhum mutirão irá conseguir. Há certos momentos em que esse bom mocismo típico da cultura política brasileira só aprofunda nosso necroestado.

Enquanto nos vangloriamos de nossas manifestações pacíficas,  seguimos presenciando o holocausto ambiental e o transformando em metáfora da destruição dos direitos sociais e das instituições democráticas. Enquanto o primeiro produz a fumaça negra das queimadas, as manchas negras de óleo, água negra de rios, o segundo produz desemprego, pobreza e desigualdade social galopantes.

Ambos evidenciam o colapso das instituições brasileiras e ambos comprometem o futuro. Sobre esse, uma coisa já sabemos com certeza. Será sombrio.

Vilma Aguiar – É socióloga, Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP), Mestre em Filosofia (USP). Atualmente é professora de pós-graduação, presidente da Escola da Política e desenvolve uma pesquisa sobre o impacto do feminismo na vida privada de mulheres.  Escreve sobre política, feminismo e crônicas no blog Política no feminino (vilmaaguiar.blogspot.com) 

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