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Análise de uma peça de propaganda neocon

Lew Rockwellpresidente do Ludwig von Mises Institute, publicou artigo, cuja tradução para o português pode ser encontrada aqui:

http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1343

Esse artigo é apenas peça de propaganda neoliberal, provavelmente talhada para a campanha eleitoral atual dos Estados Unidos. Não tem substância nenhuma, abusa de manipulação de ideias e da ingenuidade do eventual leitor. Usa basicamente um estrategema de comunicação conhecido como “falácia do espantalho”, isto é, atribuir ao antagonista características negativas que não tem, a um ponto que o leitor desatento passe a temê-lo. O mais importante é a desqualificação, posto que a argumentação necessária para o convencimento não se faz presente.

Vale a pena comentar sofismas? Perdão, comentar e analisar peças de propaganda política? Eventualmente sim, posto que às vezes há quem acredite neles. 

O trabalho é facilitado por sabermos do viés “libertarian” do Instituto Ludwig Von Mises. O objetivo dessa corrente de pensamento é tentar retroceder a um ponto onde o Estado tem seu papel minimizado, isto é, desconsiderar sua atuação como interventor e corretor dos problemas econômico-sociais que surgem com o liberalismo. Se uma sociedade deixa tudo ao cargo da iniciativa privada sabemos (pela história) do enorme potencial de reprodução e aprofundamento de injustiças sociais. Os mercados deixados “sozinhos” levam sempre ao equilíbrio, mas não levam à maximização da produção nem a cuidados necessários com o ambiente. Não há mais sociedade capaz de aceitar isso, pelo que o liberalismo estrito senso não é em geral convincente. Mas essa ideologia é conveniente para alguns segmentos empresariais, isto é, é útil para uma minoria, não para a maximização da produção e da satisfação dos agentes da sociedade tomados em seu conjunto. O caminho de discurso normalmente adotado, em uma tentativa de tornar seu programa palatável, é tentar desqualificar seu antagonista (no caso o conjunto de todas as abordagens não liberalistas), onde for possível e, para isso, é forçada a comparação do Estado a características deploradas pela sociedade, além de negar ou omitir quaisquer pontos positivos. O estratagema é simples: descreve-se um “demônio” (ou um “espantalho”), no caso o “fascismo”, associa-se o mesmo ao que se deseja combater (quaisquer sistemas com atuação do Estado na economia ou em correção de desvios sociais), finalmente, tenta-se convencer as pessoas de que a associação é verdadeira. Isso é mera manipulação.

(É mais ou menos como ocorre no discurso político usual: a)superestima-se ou inventa-se os pontos negativos do adversário; b)subestima-se ou omite-se os pontos positivos do adversário; c)superestima-se ou inventa-se os seus próprios pontos positivos; d)subestima-se ou omite-se os seus próprios pontos negativos. O único modo de escapar a esse estrategema é simplesmente ficar informado por fontes o mais diversificadas possível e não confiar integralmente, pelo menos em um primeiro momento, em nenhuma delas.)

Em negrito e entre aspas trechos de “O que realmente é o fascismo”, por Lew Rockwell (quase todo o texto, na verdade, deixou-se de fora apenas o bláblá inconsistente que tenta forçar a associação de ideias entre a vida política atual e o fascismo italiano.)

“Todo mundo sabe que o termo fascista é hoje pejorativo; um adjetivo frequentemente utilizado para se descrever qualquer posição política da qual o orador não goste.  Não há ninguém no mundo atual propenso a bater no peito e dizer “Sou um fascista; considero o fascismo um grande sistema econômico e social.”

Isso é um reducionismo e uma introdução a uma auto-vitimização (posto que em algumas circunstâncias o liberalismo depende de supressão de liberdades individuais, isto é, pode eventualmente ser tachado de “fascismo”). É evidente que fascista é um termo pejorativo, mas NÃO É VERDADEIRO que “os oradores” o apliquem a qualquer posição política. Esse termo, em uma discussão séria, normalmente é aplicado somente a ditaduras (isto é, com restrições a liberdades individuais tidas como comuns a partir do advento das democracias representativas partidárias) e que simultaneamente favorecem alguns grupos/segmentos privados. Bons exemplos no pós-2ª. Guerra foram as ditaduras do Mediterrâneo (Espanha, Portugal, Grécia), da América Latina nos anos 1960 a 1980), de países asiáticos em seu início de industrialização (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura.) Antes da 2ª. Guerra o termo se aplicou sem reservas aos regimes totalitários da Europa (Itália, Alemanha, etc.)

“O fascismo é o sistema de governo que carteliza o setor privado, planeja centralizadamente a economia subsidiando grandes empresários com boas conexões políticas, exalta o poder estatal como sendo a fonte de toda a ordem, nega direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos e torna o poder executivo o senhor irrestrito da sociedade.”

Aqui há uma indução ao erro. Essas são características presentes no fascismo, é verdade, mas há a tentativa de fixar no leitor uma imagem negativa do Estado. Podemos pensar em “planejamento central” como um caminho possível e justo, desde que não associado a privilégios (“boas conexões”), assim como podemos pensar positivamente a respeito de “poder executivo” (e seu papel condutor), desde que não associado a uma expressão que passe a noção de autoritarismo (“senhor irrestrito”)

“Tente imaginar algum país cujo governo não siga nenhuma destas características acima.  Tal arranjo se tornou tão corriqueiro, tão trivial, que praticamente deixou de ser notado pelas pessoas.  Praticamente ninguém conhece este sistema pelo seu verdadeiro nome.”

Tente-se imaginar água 100% pura e esterilizada, obra de arte sem absolutamente nada a criticar ou sociedade sem nenhum indivíduo tentando se aproveitar dos outros. A intenção aqui foi exacerbar os problemas conhecidos e existentes nas várias formas de organização sócio-econômica e tentar imputar a todas a alcunha de “fascistas”. É claro que é possível encontrar sinais de corrupção e de favorecimento em qualquer regime, até nos países nórdicos. O importante é estabelecer um ponto de corte, diferenciar entre o ocasional e o sistêmico.  Nessa perspectiva é possível encontrar muitas economias cujos Estados não favoreçam “empresários com conexões”, mas que, de um modo proposital e conhecido pela sociedade e demais poderes além do executivo, favoreçam determinadas atividades econômicas e sob regras claras. Atribuir a “fascismo” quaisquer estímulos ou subsídios é um reducionismo.

Além disso, quando pensamos em “nega direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos” (uma das características elencadas pelo autor como fundamental para o fascismo) é fácil pensar em muitas sociedades não-fascistas. Quase todas as da Europa, da Oceânia e das Américas, por exemplo. Pensando aqui em liberdade de expressão, de movimento, de organização política, se bem que é verdade que o direito fundamental a saúde, alimentação e educação ainda não é atingido em muitas. Mas há uma diferença entre “fascismo” e “sociedade injusta”, sendo que esta não é necessariamente fascista se prevê caminhos para a superação de desigualdades.

O correto seria falar que uma característica em particular do fascismo, o privilégio a grupos empresariais determinados (e a cartéis), é comum a quase todas as sociedades atuais (como Rússia, China, Estados Unidos, como grandes exemplos.) Mas o caminho para a superação desse vício não necessariamente é o liberalismo, nem a redução do Estado, mas o empoderamento do legislativo, do judiciário e de organismos não ligados ao executivo, só que isso não interessa ao autor.

“É verdade que o fascismo não possui um aparato teórico abrangente.  Ele não possui um teórico famoso e influente como Marx.  Mas isso não faz com que ele seja um sistema político, econômico e social menos nítido e real.  O fascismo também prospera como sendo um estilo diferenciado de controle social e econômico.  E ele é hoje uma ameaça ainda maior para a civilização do que o socialismo completo.  Suas características estão tão arraigadas em nossas vidas — e já é assim há um bom tempo — que se tornaram praticamente invisíveis para nós.”

O estilo é assertivo sem mostrar exemplos e argumentos, busca confundir e evitar explicações necessárias. Independentemente de se acreditar ou não que “o socialismo é uma ameaça para a civilização” seria necessário dizer o porquê dessa afirmação, pois isso não é uma verdade absolutamente conhecida como a força da gravidade.  O mesmo vale para “controle social e econômico”, pois, se quase toda a humanidade optou, ao longo da história, por tais controles, pode muito bem ser o sinal de evolução e de interação entre as partes, não o contrário.

A tônica geral se repete: desqualificar por indução qualquer organização social com Estado presente como fascismo, mesmo que os poderes e atribuições de tais estados tenham sido constituídos por discussão e participação políticas democráticas. 

“E se o fascismo é invisível para nós, então ele é um assassino verdadeiramente silencioso.  Assim como um parasita suga seu hospedeiro, o fascismo impõe um estado tão enorme, pesado e violento sobre o livre mercado, que o capital e a produtividade da economia são completamente exauridos.  O estado fascista é como um vampiro que suga a vida econômica de toda uma nação, causando a morte lenta e dolorosa de uma economia que outrora foi vibrante e dinâmica.”

Isso é totalmente apriorístico. Para aceitar tal parágrafo seria necessário acreditar sem discutir ou questionar que: a) realmente o fascismo é onipresente; b) que o “livre mercado” é um ideal em toda e qualquer situação; c) que um eventual dirigismo estatal não é capaz de ajudar à produtividade (e na verdade é o contrário, o Estado faz investimentos em logística, pesquisa, segurança institucional, justiça e educação que o mercado precisa); d) que alguma economia perdeu seu dinamismo em função de controles sociais (quando na verdade o que perdeu dinamismo, e foi bom que tenha perdido, são as práticas de exploração indiscriminada.)

“As origens do fascismo. A última vez em que as pessoas realmente se preocuparam com o fascismo foi durante a Segunda Guerra Mundial.  Naquela época, dizia-se ser imperativo que todos lutassem contra este mal.  Os governos fascistas foram derrotados pelos aliados, mas a filosofia de governo que o fascismo representa não foi derrotada.  Imediatamente após aquela guerra mundial, uma outra guerra começou, esta agora chamada de Guerra Fria, a qual opôs o capitalismo ao comunismo.  O socialismo, já nesta época, passou a ser considerado uma forma mais branda e suave de comunismo, tolerável e até mesmo louvável, mas desde que recorresse à democracia, que é justamente o sistema que legaliza e legitima a contínua pilhagem da população.”

O autor omite sistematicamente que “as pessoas” (indivíduos, partidos, pensadores sociais, etc.) se preocuparam, em relação aos fascismos, com o caráter totalitário, o belicismo e a ausência de liberdades individuais, MAS NÃO com os resultados econômicos obtidos pelos diversos planejamentos centralizados. A história condena o holocausto, a censura, a perseguição aos partidos de esquerda (em economias capitalistas), o desestímulo ao empreendedorismo (em economias do socialismo real), a opressão a minorias étnicas, sexuais ou religiosas. Mas usualmente não condena a organização de meios de produção nem a atuação dos Estados como agentes reguladores.

Constroi-se no texto o fascismo como o binômio Estado organizador da economia/ditadura, como se a segunda característica fosse consequência da primeira. Ao manipular o medo que as pessoas têm (e com razão) do autoritarismo, tenta-se criar uma aversão a qualquer atuação do Estado.

“Enquanto isso, praticamente todo o mundo havia esquecido que existem várias outras cores de socialismo, e que nem todas elas são explicitamente de esquerda.  O fascismo é uma dessas cores. Não há dúvidas quanto às origens do fascismo.  Ele está ligado à história da política italiana pós-Primeira Guerra Mundial.  Em 1922, Benito Mussolini venceu uma eleição democrática e estabeleceu o fascismo como sua filosofia.  Mussolini havia sido membro do Partido Socialista Italiano.”

Omite-se que Mussolini (como Hitler depois) deu um golpe de estado (uso de milícias, propaganda, apoio de setores como igreja e burguesia para o fechamento de partidos). O fascismo é decorrência desse golpe autoritário, não da eleição democrática de Mussolini como chefe de partido mais votado. O fato que há/houve na histórias pessoas eleitas que se tornaram ditadores não deve ser usado (potencialmente) como desqualificação de um sistema político (a democracia partidária representativa) que eventualmente faz com que exerçam o governo programas que proponham maior atuação estatal.

“Qual o principal elo entre o fascismo e o socialismo?  Ambos são etapas de um continuum que visa ao controle econômico total, um continuum que começa com a intervenção no livre mercado, avança até a arregimentação dos sindicatos e dos empresários, cria leis e regulamentações cada vez mais rígidas, marcha rumo ao socialismo à medida que as intervenções econômicas vão se revelando desastrosas e, no final, termina em ditadura.”

Há uma desinformação, talvez proposital, aqui. Não há exemplo histórico de fascismo desembocando em socialismo. Se a arregimentação de sindicatos trabalhistas foi comum, mais comum ainda foi a participação de setores patronais. E omitiu-se que na mesma época do fascismo italiano (e alemão ou japonês) de antes da 2ª. Guerra, houve a implantação bem-sucedida de elementos da social-democracia na França, Reino Unido, EEUU e Suécia, na formação de um paradigma que depois seria apropriado pelos próprios regimes ex-fascistas. Ao término das experiências totalitárias da 1ª. metade do século XX não houve nenhum retorno ao liberalismo típico do século XIX, ao contrário, houve o reconhecimento quase universal da importância da participação do Estado na economia ou prestação de serviços, sem poupar sequer os EEUU (reforma agrária, aeroportos, universalização do ensino, transportes municipais, pesquisa espacial, programas sociais.)

“O que distingue a variedade fascista de intervencionismo é a sua recorrência à ideia de estabilidade para justificar a ampliação do poder do estado.  Sob o fascismo, grandes empresários e poderosos sindicatos se aliam entusiasticamente ao estado para obter estabilidade contra as flutuações econômicas, isto é, as expansões e contrações de determinados setores do mercado em decorrência das constantes alterações de demanda por parte dos consumidores.  A crença é a de que o poder estatal pode suplantar a soberania do consumidor e substituí-la pela soberania dos produtores e sindicalistas, mantendo ao mesmo tempo a maior produtividade gerada pela divisão do trabalho.”

E por que seria ruim que empresários e sindicatos se aliassem ao Estado para obter estabilidade? E a crença não é essa como descrito, mas que o poder estatal pode, mas respeitando a soberania do consumidor, acelerar a saída de situações cíclicas de contração de demanda. O excessivo “pendularismo” e comportamento de manada típico do liberalismo, causador de grandes crises nas décadas de 1870 e 1930 não é sequer comentado como o real causador do abandono das soluções de mercado em prol das intervenções.

“Os adeptos do fascismo encontraram a perfeita justificativa teórica para suas políticas na obra de John Maynard Keynes.  Keynes alegava que a instabilidade do capitalismo advinha da liberdade que o sistema garantia ao “espírito animal” dos investidores.  Ora guiados por rompantes de otimismo excessivo e ora derrubados por arroubos de pessimismo irreversível, os investidores estariam continuamente alternando entre gastos estimuladores e entesouramentos depressivos, fazendo com que a economia avançasse de maneira intermitente, apresentando uma sequência de expansões e contrações. Keynes propôs eliminar esta instabilidade por meio de um controle estatal mais rígido sobre a economia, com o estado controlando os dois lados do mercado de capitais.  De um lado, um banco central com o poder de inflacionar a oferta monetária por meio da expansão do crédito iria determinar a oferta de capital para financiamento, e, do outro, uma ativa política fiscal e regulatória iria socializar os investimentos deste capital.”

Novamente tenta se igualar adeptos da atuação anticíclica do Estado a “beneficiários da corrupção do fascismo”, como se a social-democracia (que se desenvolveu concomitantemente ao fascismo) e o capitalismo socialmente responsável (tendência recente de subordinação de setores patronais a reais necessidades da sociedade)  fossem variantes do fascismo. A diferença entre escolha (em geral eleitoralmente sancionada em sistemas com livre participação partidária) por intervenção na economia de imposição por um sistema autoritário em nenhum momento se faz presente. 

“Em uma carta aberta ao presidente Franklin Delano Roosevelt, publicado no The New York Times em 31 de dezembro de 1933, Keynes aconselhava seu plano:

Na área da política doméstica, coloco em primeiro plano um grande volume de gastos sob os auspícios do governo.  Em segundo lugar, coloco a necessidade de se manter um crédito abundante e barato. … Com estas sugestões . . . posso apenas esperar com grande confiança por um resultado exitoso.  Imagine o quanto isto significaria não apenas para a prosperidade material dos Estados Unidos e de todo o mundo, mas também em termos de conforto para a mente dos homens em decorrência de uma restauração de sua fé na sensatez e no poder do governo. (John Maynard Keynes, “An Open Letter to President Roosevelt,” New York Times, December 31, 1933 in ed. Herman Krooss, Documentary History of Banking and Currency in the United States, Vol. 4 (New York: McGraw Hill, 1969), p. 2788.)

Keynes se mostrou ainda mais entusiasmado com a difusão de suas ideias na Alemanha.  No prefácio da edição alemã da Teoria Geral, publicada em 1936, Keynes escreveu:

A teoria da produção agregada, que é o que este livro tenciona oferecer, pode ser adaptada às condições de um estado totalitário com muito mais facilidade do que a teoria da produção e da distribuição sob um regime de livre concorrência e laissez-faire. (John Maynard Keynes, “Prefácio” da edição alemã de 1936 da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, traduzido e reproduzido in James J. Martin, Revisionist Viewpoints (Colorado Springs: Ralph Myles, 1971), pp. 203-05.)”

E em que Keynes se equivocou? Não há indicação no texto. Na realidade o keynesianismo foi um sucesso até os anos 1970, foi suporte ao “New Deal” e ao Plano Marshall e não é responsável por excessos cometidos em seu nome. 

“Controle estatal do dinheiro, do crédito, do sistema bancário e dos investimentos é a base exata de uma política fascista.  Historicamente, a expansão do controle estatal sob o fascismo seguiu um padrão previsível.  O endividamento e a inflação monetária pagaram pelos gastos estatais.  A resultante expansão do crédito levou a um ciclo de expansão e recessão econômica.  O colapso financeiro gerado pela recessão resultou na socialização dos investimentos e em regulamentações mais estritas sobre o sistema bancário, ambos os quais permitiram mais inflação monetária, mais expansão do crédito, mais endividamento e mais gastos.  O subsequente declínio no poder de compra do dinheiro justificou um controle de preços e salários, o qual se tornou o ponto central do controle estatal generalizado.  Em alguns casos, tudo isso aconteceu rapidamente; em outros, o processo se deu de maneira mais lenta.  Porém, em todos os casos, o fascismo sempre seguiu este caminho e sempre descambou no total planejamento centralizado.”

Há uma tergiversação aqui, representada pelo fato de que controle estatal da emissão de moeda e da taxa de juros não necessariamente implica em controle da concessão do crédito e dos investimentos (podendo estimulá-los, no entanto) nem significa que tal controle seja feito de modo irresponsável (o que levaria a inflação.) O contrário ocorreu mais recentemente, a partir dos anos 1980, quando a desregulamentação levou a um irresponsável aumento no uso de derivativos e de alavancagem creditícia que culminou nos problemas a partir de 2008.

“Na Itália, local de nascimento do fascismo, a esquerda percebeu que sua agenda anticapitalista poderia ser alcançada com muito mais sucesso dentro do arcabouço de um estado autoritário e planejador.  Keynes teve um papel-chave ao fornecer uma argumentação pseudo-científica contra o laissez-faire do velho mundo e em prol de uma nova apreciação da sociedade planejada.  Keynes não era um socialista da velha guarda.  Como ele próprio admitiu na introdução da edição nazista da Teoria Geral, o nacional-socialismo era muito mais favorável às suas ideias do que uma economia de mercado.”

Novamente não é convincente. A primeira frase é uma constatação apenas, não uma crítica ao estado planejador nem comprovação que estados planejadores necessariamente sejam autoritários, nem sequer mais autoritários que estados não-planejadores (como era comum nas não-democracias do século XIX.) O autor fracassa na tentativa de associar planejamento e intervencionismo a autoritarismo como também não apresenta as razões por que o pensamento de Keynes seria pseudo-científico.

“Características. Examinando a história da ascensão do fascismo, John T. Flynn, em seu magistral livro As We Go Marching, de 1944, escreveu:

Um dos mais desconcertantes fenômenos do fascismo é a quase inacreditável colaboração entre homens da extrema-direita e da extrema-esquerda para a sua criação.  Mas a explicação para este fenômeno aparentemente contraditório jaz na seguinte questão: tanto a direita quanto a esquerda juntaram forças em sua ânsia por mais regulamentação.  As motivações, os argumentos, e as formas de expressão eram diferentes, mas todos possuíam um mesmo objetivo, a saber: o sistema econômico tinha de ser controlado em suas funções essenciais, e este controle teria de ser exercido pelos grupos produtores.

Flynn escreveu que a direita e a esquerda discordavam apenas quanto a quem seria este ‘grupo de produtores’.  A esquerda celebrava os trabalhadores como sendo os produtores.  Já a direita afirmava que os produtores eram os grandes grupos empresariais.  A solução política de meio-termo — a qual prossegue até hoje, e cada vez mais forte — foi cartelizar ambos.”

Para compreender o equívoco é necessário fazer a separação entre sistema econômico de sistema político. Se pensarmos em “direita” como defensores de capital privado e “esquerda” como defensores de capital estatal (ou do estado como indutor de correções), podemos também escolher dentre qualquer dos grupos aqueles que são “autoritários”. A existência de sistemas autoritários (fascistas) que temporariamente (pois as contradições surgiriam em algum momento) corresponderam a anseios antagônicos não significa nada além dos episódios conhecidos. Não se pode concluir que o intervencionismo estatal atual, resultante da prática política democrática, programa sujeito a crítica pela sociedade e a substituição por eleições, possa ser comparável ao intervencionismo autoritário. Há o artificialismo de tentar chamar os sistemas (em maior ou menor medida) social-democratas atuais de fascistas em função da existência de cartéis (que na realidade são o destino não necessariamente mais lucrativo dos segmentos maduros da economia, como explicado por Schumpeter), quando muito mais parecidos ao fascismo foram os sistemas pretensamente liberais e não-democráticos que vigoraram antes das experiências fascistas.

“Sob o fascismo, o governo se torna o instrumento de cartelização tanto dos trabalhadores (desde que sindicalizados) quanto dos grandes proprietários de capital.  A concorrência entre trabalhadores e entre grandes empresas é tida como algo destrutivo e sem sentido; as elites políticas determinam que os membros destes grupos têm de atuar em conjunto e agir cooperativamente, sempre sob a supervisão do governo, de modo a construírem uma poderosa nação.

Os fascistas sempre foram obcecados com a ideia de grandeza nacional.  Para eles, grandeza nacional não consiste em uma nação cujas pessoas estão se tornando mais prósperas, com um padrão de vida mais alto e de maior qualidade.  Não.  Grandeza nacional ocorre quando o estado incorre em empreendimentos grandiosos, faz obras faraônicas, sedia grandes eventos esportivos e planeja novos e dispendiosos sistemas de transporte.”

É muita a-historicidade. No sentido proposto pelo autor todos os sistemas econômicos anteriores ao fascismo (mercantilismo, imperialismo, colonialismo) seriam então fascistas, pois em todos eles, destarte a ausência de controle e justiça social (como a ausência ao direito de greve e de voto), os governos não se eximiam de arrecadar impostos e realizar obras de “grandeza nacional” (como edifícios públicos, exércitos, universidades, sistemas de esgotos, urbanização e portos). O liberalismo só funciona como ideologia se há o prévio acúmulo de capital que possibilite a realização de grandes investimentos como estradas e siderurgias, só que não há exemplo de formação desse capital sem proteção de Estado (o Reino Unido e Estados Unidos, maiores exemplos de economias que se aproximaram do liberalismo, sempre contaram com sistemas protecionistas e concessões.) O liberalismo é uma utopia não-realizável por si só, o que leva a crer que, se é necessária a participação do Estado para que ele floresça, pode muito bem ser mais racional a participação do Estado para controlá-lo.

É muito mais provável acreditar em algo que não interessa ao autor, isto é, que o liberalismo só existiu como um sistema insatisfatório, tanto econômica como socialmente, e que tanto o socialismo, como o fascismo como a social-democracia (todas com intervencionismo em algum grau) são formas de superação, sendo que apenas a última é a mais viável tendo em vista as expectativas mais gerais e comuns de possibilidade de expressão e de organização política.

“Em outras palavras, grandeza nacional não é a mesma coisa que a sua grandeza ou a grandeza da sua família ou a grandeza da sua profissão ou do seu empreendimento.  Muito pelo contrário.  Você tem de ser tributado, o valor do seu dinheiro tem de ser depreciado, sua privacidade tem de ser invadida e seu bem-estar tem de ser diminuído para que este objetivo seja alcançado.  De acordo com esta visão, é o governo quem tem de nos tornar grandes.”

Já fica mais evidente aonde se quer chegar: a convencer que todo governo é ruim por simplesmente ser governo, e que existiria uma necessária oposição entre coletivo e individual, como se não fosse possível organizar esforços de modo a se produzir mais coletivamente que pela soma de iniciativas individuais. Fala-se em invasão de privacidade aleatoriamente, como se fosse uma consequência óbvia da organização de estados (ao contrário, a liberdade individual é garantida pelos sistemas jurídicos que surgiram com a evolução do intervencionismo.) Não existe sociedade sem governo, cabendo pensar, isto sim, se as tributações e os empreendimentos são feitos de acordo com o interesse comum ou de acordo com interesses individuais.

“Tragicamente, tal programa possui uma chance de sucesso político muito maior do que a do antigo socialismo.  O fascismo não estatiza a propriedade privada como faz o socialismo.  Isto significa que a economia não entra em colapso quase que imediatamente.  Tampouco o fascismo impõe a igualdade de renda.  Não se fala abertamente sobre a abolição do casamento e da família ou sobre a estatização das crianças.  A religião não é proibida.”

Discurso neocon? Mexe com fantasma da “dissolução da família”.

“Sob o fascismo, a sociedade como a conhecemos é deixada intacta, embora tudo seja supervisionado por um poderoso aparato estatal.  Ao passo que o socialismo tradicional defendia uma perspectiva globalista, o fascismo é explicitamente nacionalista ou regionalista.  Ele abraça e exalta a ideia de estado-nação.

Quanto à burguesia, o fascismo não busca a sua expropriação.  Em vez disso, a classe média é agradada com previdência social, educação gratuita, benefícios médicos e, é claro, com doses maciças de propaganda estatal estimulando o orgulho nacional.

O fascismo utiliza o apoio conseguido democraticamente para fazer uma arregimentação nacional e, com isso, controlar mais rigidamente a economia, impor a censura, cartelizar empresas e vários setores da economia, repreender dissidentes e controlar a liberdade dos cidadãos.  Tudo isso exige um contínuo agigantamento do estado policial.

Sob o fascismo, a divisão entre esquerda e direita se torna amorfa.  Um partido de esquerda que defende programas socialistas não tem dificuldade alguma em se adaptar e adotar políticas fascistas.  Sua agenda política sofre alterações ínfimas, a principal delas sendo a sua maneira de fazer marketing.”

Mais uma vez são apresentados valores da social-democracia, da democracia representativa e do Estado de bem-estar como tipificação do fascismo. É o contrário o que ocorre, é o fascismo que por vezes se apropria/ou desses valores para tentar se justificar, sem nunca conseguir por sua ausência de liberdade e pela presença de favorecimentos.

A mensagem subliminar pretendida é que a participação política de várias correntes (incluindo aquelas que propõem a formação de empresas estatais e tributações progressivas de renda) levaria necessariamente a um estado policial, quando na realidade é muito mais provável o contrário, isto é, o avanço na organização da sociedade é bem capaz de superar distorções que levariam a tensões que só seriam resolvidas com a imposição de autoritarismos.

Como se não fosse possível existir intervenção estatal (no fornecimento de serviços públicos, na organização da economia, no encaminhamento de justiça social) que seja de interesse amplo da sociedade.

“O futuro.Não consigo imaginar qual seria hoje uma prioridade maior do que uma séria e efetiva aliança anti-fascista.  De certa maneira, ainda que muito desconcertada, uma resistência já está sendo formada.  Não se trata de uma aliança formal.  Seus integrantes sequer sabem que fazem parte dela.  Tal aliança é formada por todos aqueles que não toleram políticos e politicagens, que se recusam a obedecer leis fascistas convencionais, que querem mais descentralização, que querem menos impostos, que querem poder importar bens sem ter de pagar tarifas escorchantes, que protestam contra a inflação e seu criador, o Banco Central, que querem ter a liberdade de se associar com quem quiserem e de comprar e vender de acordo com termos que eles próprios decidirem, por aqueles que insistem em educar seus filhos por conta própria, por aqueles investidores, poupadores e empreendedores que realmente tornam possível qualquer crescimento econômico e por aqueles que resistem ao máximo a divulgar dados pessoais para o governo e para o estado policial.”

Semelhante discurso é manipulativo e só deve impressionar quem não tem conhecimentos básicos de história, de sociologia ou de economia (básicos mesmo, não vindos de graduação.)

Em primeiro lugar não é necessária uma aliança anti-fascista, porque o ressurgimento dos elementos negativos do fascismo (como o excesso de policiamento, da censura e dos favorecimentos individuais) é pontual e é simultaneamente combatido pelas sociedades à medida em que vão surgindo. Já em relação aos elementos positivos da social-democracia (ou de iniciativas como o recente sistema de saúde norte-americano, a atuação dos bancos centrais em darem liquidez às economias, a justa possibilidade de países protegerem, se quiserem, setores estratégicos de suas economias), que maliciosamente são arrolados no texto como “fascismo”, não se faz crítica nenhuma embasada em argumentos. Mais ou menos como ignorar as razões e meios que fizeram a Europa Ocidental e o Japão se recuperarem econômica e socialmente do pós-guerra. E, de resto, países como EEUU, Canadá e Austrália serem sociedades afluentes com elevado padrão-de-vida.

As pessoas que fazem “intuitivamente” parte dessa “aliança” contra impostos e barreiras comerciais, mal sabem que a estabilidade e progresso social que vivem dependem essencialmente de todos os mecanismos de governo, planejamento e intervenção que foram desenvolvidos ao longo do século XX. A alternativa, o liberalismo mais estrito (e que levou à Grande Depressão dos anos 1930), isto é, a ausência de intervenção, é que levaria a uma tal deterioração social que desembocaria no fascismo.

Uma eventual maior liberdade econômica pode, sem dúvida, ser do interesse de alguns grupos empresariais (e indivíduos seus proprietários), mas o texto apenas é uma peça de propaganda do liberalismo que em nenhum momento prova que com ele seja possível obter maior crescimento econômico para a sociedade. Não há nenhuma argumentação que esclareça por que a ausência de governo investidor/interventor seria melhor que um sistema de estado presente (e subordinado a poderes democraticamente constituídos.) Tudo o que se faz é tentar chamar a social-democracia, nos seus mais variados graus, de fascismo, aproveitando-se a rejeição que esse sistema político justamente tem.

É como a piada do “pega-ladrão”. O autor diz no início “fascista é um adjetivo frequentemente utilizado para se descrever qualquer posição política da qual o orador não goste” Mas é exatamente o que faz: por não gostar de nenhuma ideia política que não seja o estado mínimo, simplesmente chama de fascista aquilo que ele não gosta, isto é, os estados não mínimos, quer sociais-democracias quer o capitalismo norte-americano de intervenção monetária e tributária. Como se estes já não fossem uma evolução sancionada por mecanismos democráticos. E em nenhum momento há prova, justificativa ou o que quer que seja em que se comparem resultados efetivos de sistemas econômicos comparados. Apenas há uma vaga associação de ideias, combinando “governo” com “autoritarismo”.

“Nos anos 1930, os defensores do estado transbordavam de ideias grandiosas.  Eles possuíam teorias e programas de governo que gozavam o apoio de vários intelectuais sérios.  Eles estavam emocionados e excitados com o mundo que iriam criar.  Eles iriam abolir os ciclos econômicos, criar desenvolvimento social, construir a classe média, curar todas as doenças, implantar a seguridade universal, acabar com a escassez e fazer vários outros milagres.  O fascismo acreditava em si próprio.”

Está chamando Roosevelt e o New Deal, e, de resto, qualquer pacto social, de fascismo. Sem contar que boa parte desses objetivos (melhor saúde, maior estabilidade dos ciclos econômicos e maior desenvolvimento social) foi de fato obtido, sendo que as crises mais graves e recentes decorrem justamente do recuo do Estado nas economias capitalistas.

“Hoje o cenário é totalmente distinto.  O fascismo não possui nenhuma ideia nova, nenhum projeto grandioso — nem mesmo seus partidários realmente acreditam que podem alcançar os objetivos almejados.  O mundo criado pelo setor privado é tão mais útil e benevolente do que qualquer coisa que o estado já tenha feito, que os próprios fascistas se tornaram desmoralizados e cientes de que sua agenda não possui nenhuma base intelectual real.”

Propaganda neocon para o público Tea Party. O setor privado dependeu sempre de um estado de bem estar social para chegar aonde está.

“É algo cada vez mais amplamente reconhecido que o estatismo não funciona e nem tem como funcionar.  O estatismo é e continua sendo a maior mentira do milênio.  O estatismo nos dá o exato oposto daquilo que promete.  Ele nos promete segurança, prosperidade e paz.  E o que ele nos dá é medo, pobreza, conflitos, guerra e morte.  Se queremos um futuro, teremos nós mesmos de construí-lo.  O estado fascista não pode nos dar nada.  Ao contrário, ele pode apenas atrapalhar.

Por outro lado, também parece óbvio que o antigo romance dos liberais clássicos com a ideia de um estado limitado já se esvaneceu.  É muito mais provável que os jovens de hoje abracem uma ideia que 50 anos atrás era tida como inimaginável: a ideia de que a sociedade está em melhor situação sem a existência de qualquer tipo de estado.”

É fato que ainda existe medo, pobreza, conflitos, guerra e morte. Só que isto está sendo manipulado. A existência ainda de coisas negativas sob o que o autor denomina de “estatismo” não é comprovação de que sem tal estatismo seria melhor. Esquece-se propositadamente de que houve substancial evolução positiva nos últimos 60/70 anos. Também se esquece que onde houve o declínio do socialismo autoritário (China, Rússia, etc) este não foi substituído por uma versão de liberalismo, mas por caminhos mais próximos ao que se chamou de social-democracia (ou capitalismo de estado.) Omite-se ainda que o ciclo de liberalização da economia (privatizações, por exemplo) se esgotou nas economias capitalistas. Ou seja, se há algo mais próximo de vir a ser uma síntese universal é o intervencionismo socialmente controlado, não o liberalismo.

“No final, esta é a escolha que temos de fazer: o estado total ou a liberdade total.  O meio termo é insustentável no longo prazo.  Qual iremos escolher?  Se escolhermos o estado, continuaremos afundando cada vez mais, e no final iremos perder tudo aquilo que apreciamos enquanto civilização.  Se escolhermos a liberdade, poderemos aproveitar todo o notório poder da cooperação humana, o que irá nos permitir continuar criando um mundo melhor.”

Há uma contradição implícita: é justamente o poder da cooperação humana que levou aos Estados como os temos hoje, que levam a que governos tentem aplicar políticas keynesianas. Que buscam políticas sociais (ou social-liberais, de igualitarismo na educação e saúde) para evitar sistemas autoritários policialescos e socialmente injustos, onde a corrupção e os favorecimentos espúrios são norma (pensemos, novamente, no Reino Unido e EEUU do século XIX. Ou em toda a miséria do resto do mundo naquela época. Em tudo o que predominava antes do “estatismo”.)

Luis Nassif

Luis Nassif

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