A USP, a ocupação e o retorno ao passado

Da Folha

Calibre 12 no campus da USP 

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR

Ao contrário da percepção geral, não são maconheiros exigindo que a USP seja área liberada para Cannabis

Uma profunda ferida geracional foi tocada nesta semana. Quatrocentos PMs, com armamento pesado e até helicóptero, entraram no campus da USP, em São Paulo, para enfrentar 72 alunos desarmados.

A PM cumpria uma ordem judicial de reintegração de posse da reitoria da USP, invadida dias antes por esses alunos. O protesto estudantil foi motivado pela detenção, dentro do campus, de três universitários, no dia 27/10, pela mesma PM, por portarem maconha.

Não foi por acidente que, diante da ação militar, dois contemporâneos meus, André Forastieri e Marcelo Rubens Paiva, foram rapidamente à internet condenar a operação, cada um a seu estilo -Forastieri incendiário, Paiva mais ponderado.

Somos da geração que participou de outra invasão da reitoria, em 1982. E que estudou na USP durante a retomada do movimento estudantil, que havia sido sufocado no período mais duro da ditadura militar.

Ver uma ação policial tão agressiva, dentro da Cidade Universitária, não nos faz bem.

Como também é difícil engolir a tempestade de ofensas contra a USP, disparada nesta semana: antro de riquinhos mimados, filhinhos de papai que querem fumar sua maconha sem sofrer repressão.

O fato: há um enorme ressentimento, em parte da população, contra a USP. É a melhor universidade do país, está entre as 200 melhores do mundo, tem o vestibular mais difícil do Brasil (excluindo ITA e IME, escolas militares de engenharia).

Um monte de gente tenta entrar na USP, sem sucesso. Não é preciso ser a reencarnação de Freud para entender o mecanismo de defesa: “Se eu não passei na Fuvest, é porque não sou filhinho de papai, não estudei numa ótima escola particular: os riquinhos tomaram minha vaga”.

Mas será que a USP é mesmo um antro de mimadinhos? Cursei duas faculdades ao mesmo tempo na universidade. Concluí ambas. Era um ambiente de glamour zero. Mais classe média, impossível.

Riquinhos? No Instituto de Química, dos 60 da minha turma, lembro só de uma loirinha toda chique, de sobrenome francês, que nunca me disse nem oi. E do herdeiro de um grande laboratório, pegador, gente boa, meu chapa. Só.

De resto, muita gente de escolas técnicas, vários da zona leste de São Paulo, pessoal simples do interior, um evangélico fervoroso, e também muitos que, ainda na faculdade (que era de período integral) davam aulas à noite para ganhar um dinheiro.

Na faculdade de jornalismo, que cursei à noite, minha melhor amiga morava na Vila Formosa, também da zona leste paulistana, e só estudou em colégio público. Outra colega querida era de uma família simples do litoral paulista.

Segundo o site da Fuvest, 24,5% dos aprovados no ano passado fizeram o ensino médio só em escola pública (estadual, municipal ou federal). É muito menos do que os 69,8 % que estudaram só em particular. Mas, a meu ver, ainda assim muito longe de caracterizar a USP como um ninho de privilegiados.

Em renda familiar, a mesma Fuvest informa que a faixa mais comum, entre os aprovados, é de três a cinco salários mínimos (18,4%). O nível mais alto, acima de 20 salários mínimos, está em quarto lugar, com 13,7%.

Que fique claro: meu apreço por esse invasores da reitoria é nenhum.

Ao contrário da percepção geral, não são maconheiros exigindo que a USP seja declarada área liberada para Cannabis. Como mostrou reportagem de Laura Capriglione e Tatiana Bedinelli, domingo na Folha, são militantes de grupos de ultraesquerda, habitantes de uma franja tão extrema do espectro político que consideram “de direita” o PSOL e o PSTU.

Maconha, para eles, não é bandeira -foi só um pretexto para bagunçar. Também sei que a representatividade desses invasores é zero. E que entraram na reitoria em desrespeito a uma decisão democrática, tomada em assembleia.

Mas vai uma grande distância entre rejeitar o embotamento ideológico dos invasores e achar que a USP é um valhala de filhinhos de papai, ou aplaudir uma operação militar tão gigantesca dentro de um campus universitário.

A foto de um policial apontando o que parece ser uma calibre 12 para o rosto de um estudante desarmado é uma nódoa na história do Estado de São Paulo. E um ponto baixo no currículo de todos os políticos que estudaram na USP, foram perseguidos pela ditadura militar e hoje aplaudem a ação da PM.

Luis Nassif

Luis Nassif

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