A confissão de um crime da PM por Erasmo Dias

Uma investigação fraudada. Jovens desarmados foram perseguidos, metralhados e mortos porque foram confundidos com bandidos perigosos. Ao perceber o erro, os homens das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) plantaram maconha e armas no Fusca dirigido pelas três vítimas. Quarenta anos depois, é a voz do homem que comandava a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, o coronel Antônio Erasmo Dias, que conta essa história e dá um testemunho inédito sobre um dos mais importantes episódios de violência policial: o caso Rota 66.
O homem que chefiou a Segurança Pública de São Paulo de 1974 a 1977 chegou ao seu gabinete na Câmara Municipal pensando no acidente que envolvera, dias antes, uma de suas filhas. Era julho de 2004. Contou como isso despertara sua lembrança sobre o tempo em que fora o todo-poderoso no Estado e sobre o primeiro “episódio drástico” vivido na secretaria que comandara. Erasmo estava à vontade e disposto a falar.
Trinta anos se haviam passado desde que três jovens pararam um Fusca azul na frente da casa 46, da Rua João Clemente, nos Jardins, na zona sul de São Paulo. Queriam furtar o toca-fitas do Puma de um amigo. Era madrugada de 23 de abril de 1975. Em menos de uma hora, aquela ação juvenil se tornaria um marco da história da violência em São Paulo: a morte daqueles jovens, metralhados pela equipe 66 da Rota, ia ocupar por mais de 20 anos as páginas dos jornais.
O ESTADO DE S. PAULO
Nº 30.698 – pág. 39; 24 de abril de 1975
Em meio à investigação do crime, um decreto presidencial determinou que a Justiça Militar devia julgá-lo. E, apesar das provas dos autos, o Conselho de Sentença, composto por quatro oficiais da Polícia Militar e um juiz auditor, decidiu absolver os policiais. Prevaleceu na Justiça castrense a versão dos PMs: os rapazes eram muito mais do que jovens inconsequentes: eram bandidos armados que portavam maconha no carro e reagiram à bala à ação dos homens que tentaram detê-los. A narrativa do caso parecia encerrada. Até que Erasmo Dias sentou em sua cadeira no gabinete no Palácio Anchieta para dar essa entrevista contando o que sabia. É essa confissão que se vai ouvir e ver aqui.
FRANCISCO NOGUEIRA NORONHA nasceu em 20 de novembro de 1957. Era o segundo filho de um rico corretor de valores paulista e de uma jovem dona de casa carioca. Chiquinho era dessas crianças que sempre aprontavam, mas sempre tinha a palavra “desculpa” na ponta da língua. Era o caçula. Em uma época em que não havia celulares, Lia Maria vestia seu robe para procurar os filhos na madrugada paulistana. Nascida Henley de Mello, a jovem crescera em um ambiente liberal na zona sul carioca e foi lá que conheceu o marido, o diretor de grande corretora de valores, José Nogueira Noronha Filho, de quem assumiu o sobrenome. Seria, a partir de então, a senhora Nogueira de Noronha. No mercado financeiro, o marido trabalhou com Francisco Souza Dantas e com Marcelo Leite Barbosa, cuja corretora – a maior do País – quebrou em 1972. Surgira então a oportunidade de Noronha morar em São Paulo. Os clientes e as velhas relações de Souza Dantas com Olavo Setúbal, dono do banco Itaú, levaram-no a aceitar o convite do último. Assumiria uma corretora ligada ao banco e traria os seus clientes da área de importação, exportação e câmbio.
De mudança para São Paulo em 1973, a família comprou dois apartamentos na Avenida Angélica, em Higienópolis, na região central. O da frente era ocupado pelo casal e o de trás, pelos filhos e pela empregada da família. Cansada de ter o carro “roubado” pelos filhos, a mãe decidiu que ia presentar o mais velho, José Nogueira de Noronha, com um Fusca. E Chiquinho ganharia uma motocicleta. Os irmãos estudavam no colégio Dante Alighieri, mas Chiquinho resolveu parar de estudar. Queria curtir. Primeiro, as noites na frente do Club Athletico Paulistano, na Rua Honduras, no Jardim América, zona sul. Ali os rapazes se encontravam e combinavam viagens ou uma ida a uma lanchonete para um milk-shake. Em pouco tempo, a turma do Paulistano ia conhecer outra: a das meninas do antigo Instituto de Arte e Decoração de São Paulo (IADê), que ficava na esquina das Avenidas Paulista e Angélica. Ali estavam as jovens Iara, Karen, Dida e Fernanda, entre outras. Todos frequentariam o quartinho dos fundos da casa dos pais de Iara, ao lado de uma pista de skate onde a jovem conheceria Chiquinho, de 17 anos. E a filha do seu Michel, um médico conhecido na cidade, passara a namorar o caçula dos Noronha. A turma ouvia Pink Floyd, Deep Purple, Yes, Secos & Molhados, Jethro Tull, bebia coca-cola e fumava maconha naquele cômodo.
À noite, os garotos gostavam de passear fumando no carro. Chiquinho dava muito trabalho aos pais. A mãe decidira interná-lo dois anos antes por causa da maconha. Naquela época lisérgica, ou se estava entre os “caretas” ou entre os “muito loucos”. E Chiquinho decidira que estaria entre estes últimos. “Meu irmão não era um santo, mas não era o diabo que os caras pintaram”, disse Noronha. “Ele vivia intensamente. Tinha um coração maravilhoso.”
Nos fins de semana, as turmas do Paulistano e do IADê iam para o Guarujá. Enfrentavam até sete horas na balsa para chegar à praia na qual as meninas tinham um apartamento. Em uma dessas viagens com as pranchas de surf penduradas no teto do Fusca azul que Chiquinho ganhara da mãe quando desistiu da motocicleta, o jovem encontrou uma cadela na rua e levou para casa. “Ela acabou ficando comigo, em São Paulo”, disse a atriz Iara Jamra. Em março de 1975, Chiquinho, Iara e um casal de amigos decidiram passar um feriado em Imbituba, em Santa Catarina. Como não tinham carteira de habilitação, escolheram um trajeto pelo interior do País, a fim de escapar da fiscalização da Polícia Rodoviária Federal na BR-116. O desvio aumentou em mais de 800 quilômetros a viagem. Mas os jovens conseguiram. Visual hippie, cabelos longos dos meninos, liberdade de quem só desejava curtir a natureza, pegar onda e voltar: assim era o grupo. “O negócio era pegar onda, natureza, ele queria trabalhar com a natureza, morar em um lugar assim”, contou Iara.
Recém-chegado nessa turma era José Augusto Diniz Junqueira, de 19 anos. O jovem estudava no Colégio Objetivo e era filho de fazendeiros de Ribeirão Preto. Morava em São Paulo havia três anos e preparava-se para o vestibular de Agronomia. Para os amigos, ele era o Gugu, o jovem que sonhava em voltar a viver no interior e administrar uma fazenda. O avô era João Augusto de Andrade, um desses médicos e farmacêuticos do interior paulista que atendiam a todos na região, independentemente do quanto e como podiam pagar. Muitas vezes recebia uma galinha ou litros de leite por um parto, conforme contou o repórter Caco Barcellos em seu livro Rota 66. A namorada de Gugu morava no interior e ele gostava de pegar a estrada com amigos para visitar sua turma de lá à noite, antes de voltar a São Paulo na mesma madrugada. Assim como os demais, tinha medo de ser apanhado pela polícia fumando maconha.
Da turma do Paulistano também participava Carlos Ignácio Rodrigues Medeiros, de 22 anos. Sua mãe, Maria Del Medeiros Consuelo de Pierre, era uma viúva espanhola que vivia em São Paulo com o filho, conhecido pelos amigos pelo apelido de Pancho. O rapaz ganhara um campeonato de moto na Venezuela, onde vivera antes de chegar a São Paulo. Fazia três meses que ele se havia envolvido em um acidente gravíssimo – um amigo batera um Opala e morrera na hora. Pancho tinha uma vareta de ferro presa entre a bacia e o fêmur e usava uma muleta. O jovem forte e bom de briga alugava motos na frente do Paulistano e também se envolvia em jogo a dinheiro. Era brigão. Na noite de 22 de abril, foi até o Paulistano e arrumou confusão com um amigo. Brigaram durante cinco minutos até que, desequilibrado, caiu em um espinheiro. Ajudaram-no a se recompor. Pancho queria cobrar uma dívida de outro rapaz que frequentava o Paulistano. Era Roberto de Carvalho Veras. “Eles foram roubar o gravador do cara. Era uma coisa de adrenalina, entendeu?”, disse José Noronha.
Redação

Redação

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  • Isso fez barulho por que eram 3 jovens

    da alta burguesia. Jovens negros são assassinados diariamente pela tal ROTA  e os leitores do OESP acham isso perfeitamente normal.

    • Sim. É como as "balas

      Sim. É como as "balas perdidas" da PM nos morros e na periferia do Rio. Há pouco, mais uma criança foi atingida, entre as mais de 50 vítimas das "balas perdidas" que encontraram seus alvos desde o início do ano. Imaginem se fosse em Ipanema, na Barra... Imaginem se a PM sairia matando jovens dos Jardins e dos bairros bacanas de SP, como fazem todas as noites em bairros de pobres e favelas...

       

  • Produzem provas para se

    Produzem provas para se safar, mesmo sabendo que não vão sofrer penalidade alguma. É rotina na polícia matadora tupiniquim. E esse senhor, só sentiu "algum" remorso, porque a própria carne foi atingida. Doi saber que a maioria da população só sente alguma coisa quando é a propria carne o alvo.

  • Erasmo de Roterdam x Erasmo de Santos, o assassino.

    Para resumir, Erasmo Dias era um criminoso. Se estiver vivo, é um velho criminoso. Coronel, Erasmo Dias esteve envolvido na explosão da sede do Estadão, quando ficava na Avenida São Luís (Viaduto Major Quedinho, Centro). Acusou a esquerda armada, mas no final dos anos 70 um repórter disse-lhe que um militar, em off, havia confessado que havia sido o próprio Erasmo quem mandara explodir o jornal dos Mesquitas. Erasmo traiu-se dizendo "-Ah, já sei quem é! Ele é um vagabundo!". Ora, se Erasmo sabia quem era o acusador, é porque a história era verdadeira. Após a Anistia, nenhum militante da esquerda armada assumiu o atentado e todos tinham certeza de que era armação dos chamados e temidos "Órgãos de Segurança". Erasmo mandou soltar bombas incendiárias na assembleia estufdantil da PUC-SP, em 1977.

    Uma reunião pró-UNE havia sido realizada dias antes e ele foi enganado pelos estudantes, enquanto cercava uma região da cidade, os estudantes fizeram a reunião proibida em outro local, desmoralizando o militar, que então, vingou-se. Em entrevistas aos jornais da época, alegou que havia usado apenas bombas de gás lacrimogêneo. Mentira. Eram bombas incendiárias, uma das estudantes feriu-se gravemente na perna e precisou fazer vários enxertos. A justiça obrigou o estado de São Paulo a arcar com as despesas. O governador da época era Paulo Egydio Martins, que já havia sido líder direitista da UNE nos anos 50. Fez campanha para que os brasileiros participassem da guerra da Coreia e por causa disso ganhou o apelido pouco vistoso de "Paulinho Coreia". Apesar disso, tinha em seu secretariado um fascista e assassino declarado como Erasmo Dias e no outro, Jorge Wilheim como Secretário do Planejamento, homem progressista de grande visão. Provavelmente, Erasmo foi nomeado por algum de seus amigos da Ditadura e Paulo Egydio Martins só ficou sabendo quando saiu no Diário Orficial do Estado de São Paulo. Ah, leitores santistas, mil desculpas, mas infelizmente Erasmo Dias nasceu no litoral paulista.

  • Erasmo Dias?
      Falecido e

    Erasmo Dias?

      Falecido e enterrado numa lápide desconhecida ?-- pra população.

               O cara que era machão e ficava de joelhos  pra amante na av Consolação?-- em dias de serviço TBM,

                        Tô fora porque é encrenca na certa.

                     Akiás, nomes destacados de SANTOS, são sempre confusos,

                       Inclusuve o badalado taxado de impoluto Mario Covas que dominou o porto santista por décadas.

                                  Não existe politico absolutamente sério.

                                O Sistema não permite.

  • Lembro do caso.

    O que causou comoção foi o fato dos garotos serem de classe média, gente de bem.

    Ainda hoje, é isso que distingue esse caso.

    Na época, como nos dias de hoje, valia a lei do bandido bom é bandido morto. 

    O kit bandido, um revólver e uma trouxinha de maconha, era costumeiramente usado para justificar execuções nas periferias. Mas não convenceu quando aplicado para os garotos de Higienópolis.

    O caso foi um divisor de águas, mostrou a burguesia que ela também podia ser vítima da violência policial que ela mesma adulava.

    Hoje, vivemos momento similar, onde a burguesia volta a perder maior recrudecimento da repressão. É bom que esse caso seja recordado. Até porque para nosso governador a orientação para a PM é "quem não reagiu está vivo".

  • Inviabilidade técnica

    Nossa, imagina que o OESP resolva fazer a mesma reportagem - e tão sofisticada quanto, com inforgáfico e tudo - para cada caso em que a polícia agiu como assassina. Não que o caso desses moços mereça menos cobertura mas até o Amarildo já caiu no esquecimento dessa mídia... aliás o que não falta é caso assim. Fico pensando naqueles que a essa imprensa aí não divulga por mera inviabilidade técnica, só porque tem que fechar o jornal...

  • Nassif
    As policias estaduais

    Nassif

    As policias estaduais tem que acabar. Quando o governo federal vai acabar com este genocíodio?

    Isto, é umas das vergonhas do Brasil.

     

  • Apenas quarenta anos......

    Apenas quarenta anos para essa execução de três jovens vir a ser revelada por um de seus partícipes.

    Notar que este esclarecimento foi feito, no meu entendimento, por obra do acaso. Sim, pois ele foi revelado ao repórter em 2004 e somente hoje, dia 26.04.2015, ele nos é revelado. Muita coisa poderia ter acontecido desde então, inclusive o repórter ter falecido, levando consigo este, digamos, "segredo".

    Suponho que o repórter nesse período de de 11 anos tenha pesquisado o caso e tomado conhecimento das declarações do Advogado de Defesa das famílias dos rapazes assassinados e tenha tomado conhecimento de que as provas contra eles foram forjadas conforme constatara o Advogado.

    Qual teria sido a razão para o repórter guardar este "segredo", para mim uma simples confissão de um crime, por todo esse tempo? O crime já estava prescrito mesmo, por que não deu o "furo" de repórtagem? Não tinha ele compromisso para com seus leitores  e com sua profissão? Foram ordens de uma redação cujos laços com a ditadura parecem ser eternos?

    Assim, Brasileiros funciona a imprensa deste País. Quem sabe, por obra e graça de alguém que hoje se arrependa e segrede a um jornalista, saberemos, fruto do acaso, daqui a uns 50 anos, qual o pano de fundo e atores reais desta  crise e de outras tantas barbaridades que hoje presenciamos no País e que tentam enfiar goela abaixo dessa multidão de desavisados.

     

     

     

     

  • Quantos casos similares a

    Quantos casos similares a este, mas tendo como vítimas pobres e negros, renderiam tamanha reportagem por parte do Estadão?

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