Trabalho

Ano novo: “tudo novo”, de novo, mais uma vez?, por Vitor Filgueiras

Ano novo: “tudo novo”, de novo, mais uma vez?

por Vitor Filgueiras[1]

Nas últimas décadas, ao redor do planeta, empresas e seus representantes têm anunciado transformações no mundo do trabalho que obrigariam trabalhadores e instituições a se adaptar, ou teriam desemprego e informalidade. Tratam-se de narrativas, que têm sido repetidas como ondas, para divulgar grandes “novidades” e suas supostas consequências, a exemplo de “novas” empresas e formas de trabalho que exigiriam mudanças na legislação, ou do “empreendedorismo” como solução para o emprego[2].

A primeira contradição dessas narrativas do “novo” é que seus argumentos já circulam há décadas, mas elas continuam sendo divulgadas como grandes “novidades”, com ou sem verniz. Neste ano novo, já em seus primeiros dias, continuamos a ser bombardeados com essas velhas novidades. Em entrevista ao Jornal O Globo, um empresário profetizou que “nossos filhos vão trabalhar seis meses em cada lugar. Estamos entrando na era do pós-emprego, do trabalho por projetos”[3]. Esse presságio é repetido no Brasil há pelo menos 3 décadas, quando já era uma “novidade” importada de outros países (ver “A morte do emprego”, José Pastore, Jornal da Tarde, 15 set. 1994).

A profecia de Pastore e de tantos outros não se consumou, e nos anos 2000 houve expansão do emprego formal (com direitos) e elevação dos salários. A “morte do emprego” (enquanto relação minimante civilizada) é um projeto político e não tem nada de inevitável.  Assim, e justamente porque, apesar de toda a precarização, sobrevivem alguns limites à exploração do trabalho, empresas e seus representantes continuam divulgando que “é tudo novo”, de novo, mais uma vez.

Aqueles que têm alguma simpatia pelas pessoas que vivem do trabalho tendem a perceber as trágicas consequências das narrativas das “novidades”. Contudo, parte do sucesso dessas retóricas (no que concerne aos objetivos empresariais) decorre da sua assimilação por parcela das instituições e dos próprios trabalhadores. Mesmo quando há críticas à precarização, é comum que as premissas dos discursos sejam aceitas, criando uma armadilha, pois o campo do trabalho fica na defensiva, e o debate circunscrito aos interesses empresariais. Desse modo, as proposições em disputa são continuamente rebaixadas em relação às condições de vida e trabalho, e se aproximam, cada vez mais, do extremismo sonhado pela utopia do livre mercado.

Exemplo dessa dinâmica precarizante tem ocorrido com a ideia de que o custo do trabalho (salários, direitos) prejudica o emprego e a formalização.  Essa é, provavelmente, a mais velha das “novidades”, mas vem sendo constantemente requentada nos últimos 40 anos. A sua lógica é simples, “trabalhador, não reclame, senão será pior”, e contamina grandes parcelas da sociedade como senso comum. Em 2012, no Brasil, em plena expansão do emprego formal sem reforma da CLT, um dos principais sindicatos do país elaborou um projeto de lei para permitir “flexibilizar” (em português, reduzir) direitos, sob o argumento de que a “lei tolhe a autonomia dos trabalhadores e empresários”[4]. Por essas e outras não foi tão surpreendente que, mesmo completamente desmentidas pela história recente do país, as “novidades” que justificaram a chamada reforma trabalhista de 2017 encontraram pouca resistência.

Passados anos dessa reforma, e já sentidas suas consequências desastrosas[5], suas premissas continuam contaminando o campo que o senso comum considera como esquerda, mas que mesmo não sendo, tende a delimitar o “polo” progressista dos debates[6]. Em texto publicado em plena pandemia por ex-ministro dos governos do PT, um dos principais quadros do partido, ficamos sabendo que “o mundo do trabalho mudou e continua mudando”, mas que “cobramos muito encargos sobre salários, elevando o custo para as empresas sem que isso se traduza em renda disponível imediata ao trabalhador”, incluindo “penduricalhos que (…) acabam elevando o custo do trabalho formal”, resultando em alta informalidade e pejotização[7].

A lógica é a mesma da velha “novidade”: tirar custo de empresa é remédio para o mercado de trabalho, no caso, para a formalização. Se até a “esquerda” admite esse raciocínio, é natural que o campo empresarial extremo, nesta primeira semana de 2022 representado no editorial de O Globo[8], surfe e dobre a aposta: “mesmo depois da reforma de 2017, elas continuam bizantinas e garantem direitos a apenas 59% da força de trabalho ocupada”. A reforma foi feita exatamente como queriam os empresários, fez centenas de alterações na legislação, o custo do trabalho caiu, suas promessas de ampliação do emprego e da formalização não foram cumpridas, mas o extremismo culpa o paciente que não melhora, não o remédio que não funciona. Pior, ignora que o remédio prescrito acentua o problema, pois reduz a demanda efetiva da economia e incentiva práticas empresariais ilegais (nome correto para informalidade).

Fora da utopia do livre mercado, o campo que se pretende civilizatório precisa entender que a formalização, assim como a dinâmica do emprego, é um fenômeno político. Formalizar, por definição, traz custos para o empresário, portanto, contratar ilegalmente é sempre mais barato. Continuar a defender mais redução de custos do trabalho para aumentar o emprego formal é equívoco refutado (de novo!) empiricamente[9]. Formalização requer pressão e imposição sobre os empresários, de preferência pela expansão conjugada da demanda por força de trabalho e da fiscalização. São esses fatores que fundamentalmente explicam a efetividade da lei, seja ela mais protetiva ou precária. Ademais, não se pode naturalizar o descumprimento da lei justamente por aqueles que hegemonizam a ordem: a ilegalidade empresarial deve ser denunciada e punida, não aceita como “consequência de custos”. Por fim, a ilegalidade prejudica quem segue a lei e alimenta a concorrência espúria, enfraquecendo a inovação, a produtividade e o desenvolvimento.

Sair do desastre em que nos encontramos não será fácil, e uma das pré-condições para isso é a redefinição dos termos do debate. 1) O direito social tem que voltar a ser justificativa para o próprio capitalismo, e recuperado na perspectiva de sua ampliação. Para isso, é urgente superar falsas polarizações, como considerar não ter direito um extremo (este um verdadeiro polo) e ter emprego formal o outro. O polo oposto a não ter direitos é democratizar as empresas, ter liberdade para participar e decidir coletivamente sobre o processo de produção e trabalho. Direito trabalhista tem que ser encarado como o mínimo que ele é! 2) Direitos sociais têm que ser discutidos como funcionais à ampliação do emprego, uma variável a ser relacionada a outras políticas para a expansão da economia (investimentos públicos, etc.). Em suma, direito social deve ser um pré-requisito para qualquer debate em nossa sociedade que aspira ser civilizada.

Com a pandemia, há sinais de mudanças nos debates e nas políticas públicas, ainda que limitadas, em muitos países. É urgente mudar o rumo da prosa por aqui. Fora das extremas direitas, sinalizações das duas candidaturas presidenciais mais fortes contra a reforma trabalhista são positivas, mas ainda muito pouco. Também os movimentos sociais e as instituições têm que ser propositivos e tensionar o debate no conteúdo, redefinindo as fronteiras da disputa. O campo do trabalho precisa voltar a ser aquele que traz as novidades.


[1] Professor de economia da UFBA. Vice-Presidente da ABET e um dos coordenadores da REMIR.

[2] Essas narrativas são o objeto de análise do livro “É tudo novo”, de novo (Boitempo, 2021). Nele constam as fontes, indicadores e informações completas do presente texto.

[3] https://oglobo.globo.com/economia/negocios/estamos-entrando-na-era-do-pos-emprego-diz-executivo-da-anima-um-dos-maiores-grupos-privados-de-educacao-1-25338617

[4] Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, “ACE”, Tribuna Metalúrgica, São Bernardo do Campo, 2012, p.

[5] Ver, por exemplo: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/12/08/desempregado-de-carteira-assinada-e-o-fruto-da-flexibilizacao-trabalhista.htm

[6] https://jornalggn.com.br/artigos/a-falsa-polarizacao-e-a-definicao-de-esquerda-e-direita-por-vitor-filgueiras-e-savio-cavalcante/

[7] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2020/07/desoneracao-da-folha-de-pagamento.shtml

[8] https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/e-preciso-um-plano-para-reduzir-economia-informal.html

[9] É possível discutir a melhor forma de financiar a previdência, por exemplo, para pegar mais pesado com quem emprega menos. Mas não dá para estabelecer a relação causal entre reduzir custo com ampliar emprego e formalização.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

Redação

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  • Quando ouço, ou leio, a expressão ‘senso comum’, saco o revólver.
    Nada a ver com conhecimento empírico, categoria que deu origem a essa expressão mequetrefe.
    Senso comum é, ‘não queira ter muitos direitos, senão não haverá empregos’.
    A verdade é, ‘quanto mais caro o custo do emprego, menos emprego haverá.’
    Qual a única verdade indiscutível nessa equação?
    Ou o emprego se subordina aos nossos interesses e conveniências, ou se virem; é a palavra do empregador.
    Ou o empregador nos dá o que queremos, ou não trabalhamos; é a palavra do empregado.
    Senso comum=o empregador tem alternativa, o empregado não.
    Porque, se eu não aceito as condições oferecidas, eu não trabalho. Mas aí fora está o que Marx chamava de exército de reserva. Que, no tempo dele, comnpunha apenas algumas divisões; hoje, abrange uma horda de desesperados que aceitariam ser bucha de canhão, de bom grado. Ou seja, se eu não aceito, há uma multidão que aceita, para não morrer de fome.
    A grande exigência do Capitalismo é de origem onomástica; é necessário, o tempo todo, criar novo nomes e expressões para amenizar o peso de cada etapa da degradação do trabalho. Já fomos subdesenvolvidos, passamos a ‘em desenvolvimento’, ‘emergentes’, etc.; já fomos desempregados, excedentes, agora somos empreendedores, fabricamos brigadeiros e doces, fazemos delivery, unhas e sobrancelhas; viva o futuro, rumo à prosperidade!
    Que horror.
    O Capitalista não necessita mais de mais-valia, não necessita mais explorar o trabalho de ninguém - a financeirização da economia tirou esse ‘white man’s burden’ de suas costas. Isso proporcionou ao empregador que ainda tem esse anacronismo - a linha de produção, o trabalho humano - a vantagem comparativa de pagar uma miséria ao trabalhador, para por em movimento o que ainda sobra de economia real, nesse mundo, sem correr o risco de ficar sem mão-de-obra.
    Lula falou em revogar a excrescência promovida por Michel Temer, em 2017. Tanto bastou para ter, de volta, assestadas contra si as baterias da Globo.
    É domingo, estou relaxando, tomando umas cervejinhas, vendo um estúpido filme hollywoodiano na televisão, e dou de cara com esse post. Exato, direto, contundente. A esquerda aceita o ‘senso comum’, quer trabalhar dentro dele, tentar mudar as coisas de fora para dentro.
    E eu repito, que horror. Vá para as entranhas do monstro, amigo, e você sabe qual será seu fim.
    E cada vez mais, me convenço de que o futuro, ali na esquina, ‘is just a shot away’, como diriam os Stones, que ouço nos headphones, enquanto minha esposa se comove com o cinemão.
    E o ‘shot’, o tiro, amigos, em breve, terá significado literal.

  • Já estou meio toldado.
    Onde se lê, 'de fora para dentro', leia-se, 'de dentro para fora'.
    Bom domingo a todos.

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