América Latina/Caribe

No Dia da Memória, multidão vai às ruas na Argentina para dizer “Nunca Mais”

No Dia da Memória, multidão vai às ruas na Argentina para dizer “Nunca Mais”

por Maíra Vasconcelos, especial para Jornal GGN

Quando tinha dezessete anos, Anibal M., 66, de um dia para o outro, viu alguns de seus colegas não voltarem mais a frequentar as aulas, no conceituado e tradicional Colégio Nacional de Buenos Aires (CNBA). Neste 24 de março, junto a outros ex-colegas do CNBA, ele segurava um cartaz com a foto em preto e branco de seu amigo Juan Carlos Marin, desaparecido no dia 7 de julho de 1976. “Esses companheiros estavam com a gente nas aulas, quando, no dia seguinte, já não vieram mais”. E, assim, incontáveis cartazes, bandeiras e faixas com fotos de pessoas desaparecidas, a presença de sobreviventes da tortura, inúmeras homenagens às vítimas do terrorismo de Estado ocuparam todo o percurso dos dez quarteirões da Avenida de Maio, e ruas próximas, como Perú, Piedras, Tacuarí, na região central de Buenos Aires, neste último domingo. À diferença de anos anteriores, a jornada deste #24M aconteceu em meio a tentativa do atual governo negacionista de ultradireita de Javier Milei, de instalar outra leitura sobre as atrocidades cometidas durante a última ditadura cívico-militar, sendo que muitos desses crimes foram demonstrados judicialmente. O governo lançou um vídeo de 12 minutos, difundido nas redes sociais, com depoimentos que corroboram com a ideia de que houve uma guerra e não um massacre, como sustentam as organizações sociais e de direitos humanos.

Junto à Associação de Atores e Atrizes, Rubén Santagala, 81, segurava um cartaz feito de pano com o desenho de um corpo onde se lia, Silvia Shelby, atriz. Ela foi desaparecida no dia 6 de agosto de 1976, pelo regime militar. “Aqui temos os nossos desaparecidos, os atores”. Ator, diretor e fundador do “Teatro de la Fábula”, espaço independente e em funcionamento há 59 anos, Santagala ressaltou a ausência da operação policial anti-protesto da ministra de Segurança Patricia Bullrich, que chegou a considerar a possibilidade de atuar durante a manifestação, o que finalmente não ocorreu. A jornada deste #24M foi tida como histórica, por alguns jornalistas e meios de comunicação, pela quantidade superior de manifestantes, se comparado com outros anos.

Com a presença das “Avós da Praça de Maio”, em mais um “Dia Nacional da Memória, pela Verdade e Justiça”, comemorado todo 24 de março, a Argentina, mais uma vez, foi palco do ato político que, talvez, seja o mais importante da América Latina, em favor da luta pelos direitos humanos e reivindicação dos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado. A marcha deste #24M começou por volta do meio-dia, e foi convocada por organismos de direitos humanos, pelas principais centrais sindicais do país, e também contou com a participação de partidos de esquerda. Como em outras cidades do país, em Mar del Plata, Rosario e La Plata também aconteceram manifestações pelo dia da memória. 

Em meio a tantas expressões de luta social, era difícil tentar enumerar também as reivindicações específicas contra o governo de extrema-direita de Javier Milei, como, por exemplo, o não à privatização do “Banco Nación”, da companhia aérea “Aerolíneas”, e do Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA). Por essa razão, as marchas deste 24 de março tiveram diferentes propostas e foram lidos dois documentos, por separado, no palco instalado na Praça de Maio. Por um lado, as reivindicações das organizações de direitos humanos, e, por outro lado, a dos partidos de esquerda. 

Giuliano Guerriero, 24, militante do “MST”, partido que compõe a “Frente de Esquerda”, estava nas ruas juntando assinaturas contra a proposta do governo Milei de privatização das salas de cinema mantidas com recursos do Estado. Já foram despedidos 170 trabalhadores do INCAA, afirmou Guerriero. Os cinemas estatais priorizam as produções nacionais em sua grade de programação, salvo os festivais de cinema que incluem produções de fora da Argentina. Também os valores do ingresso são significativamente inferiores aos praticados nos cinemas comerciais. Hoje, um ingresso nos cinemas do Estado, em Buenos Aires, custa $400 pesos, o equivalente, por exemplo, a um alfajor.

Governo Milei nega o terrorismo de Estado

O governo Milei tenta instalar uma nova leitura sobre os crimes cometidos durante a ditadura cívico-militar e reivindica “memória às vítimas da subversão”, como dito em um spot lançado oficialmente, neste 24 de março, em referência aos militares e civis mortos em atos de agrupações de esquerda contrárias ao terrorismo de Estado. No vídeo, a filha de um militar morto em um ato da guerrilha armada “Exército Revolucionário do Povo” (ERP), reclama o que chama de “a história completa”. Na Argentina, houve um plano sistemático para o desaparecimento de pessoas que eram contrárias ao regime, conforme ficou demonstrado em várias decisões judiciais. O governo Milei sustenta que, durante a última ditadura, as forças do Estado cometeram “excessos”. “Para nós, houve uma guerra durante a década de 1970”, argumentou o então candidato, durante o primeiro debate presidencial, no ano passado.

“Hoje, mais do que nunca, necessitamos reivindicar a memória, a verdade e a justiça, diante de um governo que está sendo cúmplice, pelo menos no discurso, com esses tempos horríveis de nossa Argentina. É indispensável estar aqui hoje e estamos comovidos, há uma enorme quantidade de pessoas”, afirmou a empresária Adriana Passucci, 65, que participa da marcha desde a década de 1980. Na Argentina, 1.200 pessoas foram condenadas por crimes contra a humanidade, cometidos durante o terrorismo de Estado.

Durante debate presidencial, em outubro do ano passado, Milei chegou a afirmar que “não são 30.000, são 8753”, o número de mortos e desaparecidos pelo regime, discurso sustentado principalmente pela vice-presidente Victoria Villarruel, que já defendeu publicamente militares condenados por crimes contra a humanidade. Entre outras práticas de extermínio e desaparecimento de pessoas, o regime militar argentino, de estilo nazista, o que o distingue de demais ditaduras latino-americanas, também praticou o roubo de bebês de mães que eram sequestradas e pariam em centros clandestinos de detenção e tortura. A prática de apropriação de bebês gerou a busca da Associação e Organização de direitos humanos das Avós da Praça de Maio, fundada em 1977, pela identificação de seus netos. Até o dia de hoje, foram resolvidos os casos de 137 netos, que puderam conhecer sua verdadeira origem. As Avós recebem consultas diárias de pessoas que duvidam de sua origem familiar.

O lema da marcha deste ano foi “30.000 razões para defender a pátria. Chega de miséria planejada”. Mais uma vez, a Praça de Maio, cenário de todas as manifestações populares mais importantes da história do país, acolheu a luta da sociedade argentina pelos direitos humanos. Nessa mesma praça onde, também, todas as quintas-feiras, às 15h30, desde 1977, as “Mães da Praça de Maio” estão presentes para pedir justiça e reclamar o aparecimento do corpo de seus filhos desaparecidos pelo regime militar de 1976.

Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

View Comments

  • Roger Waters estava presente na manifestação contra a extradição de Julian Assange para os EUA; David Gilmour, não. Waters se levanta contra o fascismo; Gilmour se levanta contra Waters

Recent Posts

Comunicação no RS: o monopólio que gera o caos, por Afonso Lima

Com o agro militante para tomar o poder e mudar leis, a mídia corporativa, um…

8 horas ago

RS: Por que a paz não interessa ao bolsonarismo, por Flavio Lucio Vieira

Mesmo diante do ineditismo destrutivo e abrangente da enchente, a extrema-direita bolsonarista se recusa a…

10 horas ago

Copom: corte menor não surpreende mercado, mas indústria critica

Banco Central reduziu ritmo de corte dos juros em 0,25 ponto percentual; confira repercussão entre…

10 horas ago

Israel ordena que residentes do centro de Rafah evacuem; ataque se aproxima

Milhares de pessoas enfrentam deslocamento enquanto instruções militares sugerem um provável ataque ao centro da…

10 horas ago

Governo pede ajuda das plataformas de redes sociais para conter as fake news

As plataformas receberam a minuta de um protocolo de intenções com sugestões para aprimoramento dos…

11 horas ago

As invisíveis (3), por Walnice Nogueira Galvão

Menino escreve sobre menino e menina sobre menina? O mundo dos homens só pode ser…

14 horas ago