Artes

As invisíveis (1), por Walnice Nogueira Galvão

As invisíveis (1)

por Walnice Nogueira Galvão

Alaíde Costa não foi longe na Bossa Nova. Mulher, negra e filha de lavadeira, não era moça de fina extração como as musas do movimento. Figura entre os precursores, entre aqueles poucos que participaram das primeiras reuniões  e que definiram as linhas-mestras do estilo. Como compositora, foi à época parceira de Tom Jobim, Vinicius, Johnny Alf, Geraldo Vandré. Hoje, quem a requesta para parceira é Emicida.

Aos 89 anos, sempre uma grande dama, não pratica a maledicência e não gosta de comentar as indignidades que ficaram no passado. Mas não esquece que se manteve inquebrantável ante as propostas das gravadoras para gravar um sambinha. Claro, uma negra devia cantar samba… Talvez a combinação de ser negra e mulher fosse demais para um movimento de rapazes brancos da Zona Sul absorver, movimento que nasceu como dissidência do samba de morro dos negros. Houve quem pensasse que, devido a seus dotes extraordinários, ela viria a ser a grande voz feminina da Bossa Nova. Mas, ao contrário, ela foi-se eclipsando e ficaria fora de cena por muitos anos, ausente da TV e dos shows, embora continuasse gravando esporadicamente.

Houve todavia quem abrisse os ouvidos a seus talentos fora do comum. Foi o caso do maestro Diogo Pacheco, que em 1965 alçou Alaíde ao Teatro Municipal num recital de melodias renascentistas e medievais, o maravilhoso espetáculo chamado Alaíde Alaúde. Ele entendeu quem era Alaíde e seu timbre incomum, capaz de cromatismo incríveis, rivalizando com cantoras de jazz como Sarah Vaungh, e outras.

No cinema passou-se algo semelhante. Helena Solberg e Teresa Trautman, as duas únicas mulheres do Cinema Novo, foram integradas em posição subalterna e quase anônima. Ambas trabalharam nos filmes de seus colegas;

Muito mais tarde, a primeira dirigiria Carmen Miranda: Bananas is my business, premiadíssimo aqui e no exterior. Na ocasião, ela fez A entrevista (1966), em que dava voz a meninas, num recorte de gênero então raro. O recorte torna o filme original e histórico ao mesmo tempo.  Como profissional,  desenvolveria sua carreira nos Estados Unidos.

A segunda fez Os homens que eu tive (1973). De grande independência como concepção, trata de amor livre e de experiências eróticas com a maior seriedade. Nem precisa dizer que a censura da ditadura o proibiu para sempre, ao fim de poucas semanas de exibição. A diretora, produtora e roteirista passaria a dedicar-se ao audiovisual.

No cinema, data de ontem uma descoberta notável. Todos sabem que os irmãos Lumnière inventaram o cinematógrafo e Méliès inventou o filme de ficção. Só que agora se sabe que não cabe a ele mas a Alice Guy-Blaché a honra. O que aconteceu? O de sempre; ela era  a número 2 dos Estúdios Gaumont, só respondendo ao próprio dono. E já tinha feito cerca de 1000 filmes de ficção em curta-metragem, a partir de 1895. O marido se mudou para os Estados Unidos e ela foi junto, em família. Lá teve longa e ilustre carreira, chegando a dirigir um estúdio. Enquanto isso, seu nome era cuidadosamente apagado de tudo o que tinha feito na França, sem que ela percebesse. Quando, muitos anos depois, voltou à pátria, teve que iniciar uma campanha para restaurar seu nome onde tinha sido obliterado. Quando morreu, ainda não tinha completado a tarefa. Mas hoje ninguém mais diz que Méliès inventou o filme de ficção.

No cinema mundial, já foi bem estudado o processo. Enquanto era uma coisa nova, amadorística e incrivelmente criativa, as mulheres predominavam na arte, tanto na Europa quando nos Estados Unidos. Assim que começou a dar dinheiro e a se industrializar, os homens chegaram em massa e expulsaram as mulheres – aliás para sempre. Veja quantas mulheres estão por trás das câmeras no cinema hoje. Há estatísticas: chama-se exercício de poder.

Tata Amaral fez uma mini-série intitulada As protagonistas, em 13 episódios, estudando as mulheres no audiovisual, cobrindo toda a história do cinema brasileiro, São cerca de 70 mulheres que deixaram colossal contribuição. A mini-série é de 2021, ano em que foi exibida pelo Canal Brasil, mas bem que já é hora de reprisá-la.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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